Starlink: a ‘Internet de Elon Musk’ leva euforia e medo para a Amazônia
Sumaúma - 6/11/2023 - [gif]
Autor: André Duchiade e Catarina Barbosa
Assunto: Políticas de conectividade
Povos Indígenas e comunidades tradicionais celebram vantagens da tecnologia que já começa a dominar a região e tentam adotar medidas de segurança e conscientização, enquanto o governo estuda formas de bloquear o sinal em áreas de garimpo
O som do martelo anuncia a instalação de uma pequena estrutura de madeira, de pouco mais de 1 metro quadrado, construída por Quilombolas da comunidade São Rosário, no município de Acará, estado do Pará, na Amazônia brasileira. Em questão de horas, o espaço abrigaria uma esperada antena Starlink. De celular nas mãos e sorrisos escancarados, um grupo de adolescentes cochichava, enquanto as caixas com equipamentos eram colocadas no chão: “É a internet! É a internet!”.
José Carlos Galiza, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), tem sido recebido sempre de forma calorosa nas comunidades tradicionais quando chega com o quadrado metálico de 54 centímetros e pouco mais de 4 quilos, a antena para conexão via satélite da empresa SpaceX, do multibilionário Elon Musk. Para quem vive em áreas repletas de mata e igarapés, o encurtamento da distância até a capital e outras comunidades pode significar “a diferença entre a vida e a morte”, nas palavras de Galiza. “Muitos desses lugares são desertos médicos, não há médicos, enfermeiros, nem agentes comunitários de saúde”, disse a liderança a SUMAÚMA. Galiza atua no Conexão Povos da Floresta, um projeto da sociedade civil para conectar à internet localidades do interior da Amazônia. “Em situações de emergência, as pessoas podem chamar socorro, ou sair de barco e já se organizar para ter uma ambulância esperando. Conseguem chegar ao hospital muito mais rápido e têm mais chance de se salvar.”
Se a internet é vista como uma possibilidade de melhorar o acesso à saúde, o mesmo ocorre com a educação. Com os olhos marejados, Nazilene Andrade, de 24 anos, mãe solo de três crianças, acredita que o acesso à internet pode mudar a realidade dela e dos filhos, uma menina de 5 anos e dois meninos, um de 3 anos e o bebê de 11 meses. Faz pouco tempo que o marido foi embora e a deixou sozinha com as três crianças. Levará tempo para curar o desafeto, mas naquele dia Nazilene estava alegre, pois a chegada da internet lhe permitirá retomar um projeto profissional que foi obrigada a abandonar. Ela havia conseguido uma bolsa integral em um curso técnico de enfermagem, oferecido por uma empresa privada do município. O curso é híbrido: metade presencial, metade on-line, mas Nazilene precisou abandoná-lo por não conseguir cumprir a parte on-line sem acesso à internet. “Fiquei muito triste, são muitas coisas para lidar, mas descobri outro dia que tenho um prazo de três meses para poder retomar os estudos. Com a internet chegando hoje na comunidade, eu vou poder voltar a estudar”, diz. “Como não tínhamos internet aqui, eu sempre ficava um tempo depois da aula para fazer os trabalhos, mas agora vou poder fazer aqui em casa”, conta Fabrício Virgínio da Silva, de 16 anos, também morador de São Rosário, que cursa o 9º ano do ensino fundamental.
Os sistemas de internet que existiam até a chegada da Starlink dificilmente alcançavam as áreas em que a floresta está mais conservada – ou, quando instalados, ofereciam uma conexão precária e intermitente. Esse cenário se modificou de forma acelerada a partir de setembro de 2022. Nessa data, a Starlink de Elon Musk, hoje o homem mais rico do mundo, começou a operar na Amazônia Legal. Com uma nova tecnologia, oferece uma conexão estável em áreas remotas e de difícil acesso.
Ao final do primeiro semestre deste ano, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Starlink já havia se tornado o serviço de internet por satélite mais utilizado na região Norte do Brasil. Em agosto, detinha 42,5% de participação no mercado de satélite da região e 35 mil contratos. Levantamento feito pela BBC News na Anatel revelou que a empresa tem hoje clientes privados em 697 dos 772 municípios da Amazônia Legal (formada por nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão). A internet de Elon Musk é quase onipresente: está em 90% das cidades da Amazônia.
Letramento digital: as comunidades estão preparadas?
A Starlink atrai os grupos que mantêm a floresta em pé – povos Indígenas e comunidades tradicionais, profissionais de órgãos de fiscalização, de educação, de saúde e ativistas que trabalham na região amazônica. Para eles, a internet é uma ferramenta que pode abrir oportunidades de telemedicina, educação a distância, articulação política, comércio, lazer, proteção contra abusos e violações de direitos humanos, programas de formação profissional e até mesmo denúncias de tentativas de destruição da natureza.
Uma das preocupações de José Galiza é com a ausência de letramento digital nas comunidades – como é chamada a compreensão e capacidade de interpretar, criar e desenvolver habilidades de leitura e escrita no cenário tecnológico, assim como garantir a segurança no uso das novas ferramentas. Em outubro, quando chegou com a antena Starlink a São Rosário, Galiza pediu aos moradores do quilombo que acessem apenas conteúdos confiáveis nas redes e usem a internet como ferramenta para monitorar o que acontece no território e combater a grilagem, o desmatamento e as queimadas. Galiza também enfatizou a importância dos cursos de empreendedorismo para que os Quilombolas possam atuar na bioeconomia. “Bioeconomia é a linguagem que está sendo usada, mas eu chamo de Economia Preta Quilombola. A nossa economia é baseada na coletividade e precisamos nos fortalecer diante desse tema, mas, para isso, temos que nos qualificar”, diz.
Os alertas de Galiza fazem sentido, sobretudo porque a antena Starlink também já faz parte do kit básico dos destruidores da floresta. Há atualmente provas abundantes, no radar da Polícia Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), de como garimpeiros rapidamente tiraram proveito do mundo conectado oferecido pela Starlink para ações ilícitas: trocam informações antecipadas sobre prováveis operações de fiscalização antigarimpo, fazem negócios enquanto arrancam ilegalmente ouro de áreas protegidas, ou simplesmente divulgam posts no TikTok e falam com as famílias. Somam-se a eles madeireiros, grileiros e narcotraficantes, além de latifundiários e operadores de mineradoras transnacionais.
“A Starlink quer vender o produto dela. Assim como vende para a gente enquanto Quilombola e povo da floresta, vende para qualquer um. E não há nada que possamos fazer a respeito”, resume Galiza.
Para Bolsonaro, Musk é o “mito da liberdade”
Desde que o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) autorizou a entrada da empresa de Musk no país, o Estado brasileiro não apresentou nenhum estudo de impacto sobre sua atuação na região amazônica, tampouco promoveu um debate público sobre a necessidade de eventual regulamentação adicional.
A sintonia de Musk com a extrema direita global é visível. Em maio de 2022, Bolsonaro se encontrou com Elon Musk em Porto Feliz, no interior de São Paulo. Na ocasião, o multibilionário foi condecorado com uma medalha de honra. Após uma reunião a portas fechadas, Bolsonaro afirmou que Musk era “um mito da liberdade” por ter comprado o Twitter. Várias vezes, durante a visita, o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, disse que os satélites da Starlink ajudariam no monitoramento da Amazônia, sem detalhar como isso ocorreria. Perguntado se os satélites não poderiam dar a Musk informações privilegiadas de interesse nacional, Faria negou. “Eles é que estão abrindo mão da soberania deles para nós”, alegou. O ministro da Casa Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira (PP-PI), chegou a postar em suas redes a foto de Musk com a medalha que recebeu.
A propagação da Starlink é tão veloz que há risco concreto de monopólio, na visão de especialistas ouvidos por SUMAÚMA. A iniciativa pertence a um bilionário estrangeiro errático e inconfiável, com claros interesses políticos. Há ainda uma coleta de dados sensíveis concentrada nas mãos de um único player – um conjunto de informações referentes a geolocalização e frequência de uso, e tudo isso em uma região estratégica do mundo. Finalmente, a chegada da internet a comunidades tradicionais pode ocasionar mudanças culturais profundas, que deveriam ser monitoradas pelo poder público. Logo, se a expansão da conectividade desperta otimismo, há, igualmente, razões para preocupação.
Conexão cara, rara e ruim
A região Norte tem os piores indicadores de uso da internet no país, de acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2022, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), órgão multissetorial responsável por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da internet em solo brasileiro. Desde 2005 o órgão mede a conectividade nacional. Também segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “a baixa qualidade da conexão, a cobertura limitada e os preços exorbitantes são as principais características do acesso à internet na região Norte”. Fora das capitais, a oferta de internet costuma ser cara e ruim.
“Em Manaus, você paga 99 reais para ter acesso a 350 megabits de velocidade. Já em Coari [a 350 quilômetros a oeste], custa 300 reais por 10 megabits. Muito caro e por um serviço de má qualidade”, exemplifica Hemanuel Veras, que conduz uma pesquisa de doutorado sobre conectividade na Amazônia na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é membro do Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA), de Manaus. “Há muita diferença entre cidade e interior, e, no interior, entre a sede e a zona rural”, explica.
Levar cabos de fibra óptica através de zonas de mata densa e rios de grandes dimensões demanda investimentos consideráveis, o que torna o empreendimento pouco atrativo para o setor privado. “A conexão vai até o centro do município, mas para ali. A última milha, o assinante precisa pagar, porque para o provedor não compensa comercialmente”, afirma Fabio Storino, especialista em direitos digitais do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação e coordenador nacional da pesquisa TIC.
No passado, antes da entrada da Starlink, dois programas federais tentaram mitigar problemas de conectividade, instalando redes de transporte de fibra óptica em rios da região amazônica. Em 2014, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Exército Brasileiro firmaram um acordo para realizar o Projeto Amazônia Conectada, que garantiria conectividade aos moradores de cidades ribeirinhas. Em 2016, a iniciativa levou fibra óptica até Manaus, capital do Amazonas. Um trecho de 220 quilômetros entre as cidades de Coari e Tefé, ambas no Amazonas, viria em seguida. Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o projeto “acabou se restringindo principalmente ao uso do Exército, sem beneficiar diretamente a população local”.
O outro projeto, intitulado Programa Norte Conectado, faz parte do Programa Amazônia Integrada Sustentável (Pais), proposta do Ministério das Comunicações que complementa o Projeto Amazônia Conectada. Anunciado em setembro de 2021, durante o governo Bolsonaro, tinha como objetivo expandir a infraestrutura de comunicações na região amazônica por redes de fibra óptica. Mantido pelo governo Lula sem alterações visíveis, o Norte Conectado consiste em construir oito infovias em rios para conectar órgãos públicos, como escolas, universidades, hospitais e tribunais, com cobertura total prevista de 12 mil quilômetros e cerca de 10 milhões de habitantes em 59 municípios, ao custo de 1,35 bilhão de reais, oriundos do leilão do 5G.