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07 NOV 2023

Starlink: a ‘Internet de Elon Musk’ leva euforia e medo para a Amazônia


Sumaúma - 6/11/2023 - [gif]


Autor: André Duchiade e Catarina Barbosa
Assunto: Políticas de conectividade

Povos Indígenas e comunidades tradicionais celebram vantagens da tecnologia que já começa a dominar a região e tentam adotar medidas de segurança e conscientização, enquanto o governo estuda formas de bloquear o sinal em áreas de garimpo

O som do martelo anuncia a instalação de uma pequena estrutura de madeira, de pouco mais de 1 metro quadrado, construída por Quilombolas da comunidade São Rosário, no município de Acará, estado do Pará, na Amazônia brasileira. Em questão de horas, o espaço abrigaria uma esperada antena Starlink. De celular nas mãos e sorrisos escancarados, um grupo de adolescentes cochichava, enquanto as caixas com equipamentos eram colocadas no chão: “É a internet! É a internet!”.

José Carlos Galiza, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), tem sido recebido sempre de forma calorosa nas comunidades tradicionais quando chega com o quadrado metálico de 54 centímetros e pouco mais de 4 quilos, a antena para conexão via satélite da empresa SpaceX, do multibilionário Elon Musk. Para quem vive em áreas repletas de mata e igarapés, o encurtamento da distância até a capital e outras comunidades pode significar “a diferença entre a vida e a morte”, nas palavras de Galiza. “Muitos desses lugares são desertos médicos, não há médicos, enfermeiros, nem agentes comunitários de saúde”, disse a liderança a SUMAÚMA. Galiza atua no Conexão Povos da Floresta, um projeto da sociedade civil para conectar à internet localidades do interior da Amazônia. “Em situações de emergência, as pessoas podem chamar socorro, ou sair de barco e já se organizar para ter uma ambulância esperando. Conseguem chegar ao hospital muito mais rápido e têm mais chance de se salvar.”

Se a internet é vista como uma possibilidade de melhorar o acesso à saúde, o mesmo ocorre com a educação. Com os olhos marejados, Nazilene Andrade, de 24 anos, mãe solo de três crianças, acredita que o acesso à internet pode mudar a realidade dela e dos filhos, uma menina de 5 anos e dois meninos, um de 3 anos e o bebê de 11 meses. Faz pouco tempo que o marido foi embora e a deixou sozinha com as três crianças. Levará tempo para curar o desafeto, mas naquele dia Nazilene estava alegre, pois a chegada da internet lhe permitirá retomar um projeto profissional que foi obrigada a abandonar. Ela havia conseguido uma bolsa integral em um curso técnico de enfermagem, oferecido por uma empresa privada do município. O curso é híbrido: metade presencial, metade on-line, mas Nazilene precisou abandoná-lo por não conseguir cumprir a parte on-line sem acesso à internet. “Fiquei muito triste, são muitas coisas para lidar, mas descobri outro dia que tenho um prazo de três meses para poder retomar os estudos. Com a internet chegando hoje na comunidade, eu vou poder voltar a estudar”, diz. “Como não tínhamos internet aqui, eu sempre ficava um tempo depois da aula para fazer os trabalhos, mas agora vou poder fazer aqui em casa”, conta Fabrício Virgínio da Silva, de 16 anos, também morador de São Rosário, que cursa o 9º ano do ensino fundamental.

Os sistemas de internet que existiam até a chegada da Starlink dificilmente alcançavam as áreas em que a floresta está mais conservada – ou, quando instalados, ofereciam uma conexão precária e intermitente. Esse cenário se modificou de forma acelerada a partir de setembro de 2022. Nessa data, a Starlink de Elon Musk, hoje o homem mais rico do mundo, começou a operar na Amazônia Legal. Com uma nova tecnologia, oferece uma conexão estável em áreas remotas e de difícil acesso.

Ao final do primeiro semestre deste ano, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Starlink já havia se tornado o serviço de internet por satélite mais utilizado na região Norte do Brasil. Em agosto, detinha 42,5% de participação no mercado de satélite da região e 35 mil contratos. Levantamento feito pela BBC News na Anatel revelou que a empresa tem hoje clientes privados em 697 dos 772 municípios da Amazônia Legal (formada por nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão). A internet de Elon Musk é quase onipresente: está em 90% das cidades da Amazônia.

Letramento digital: as comunidades estão preparadas?

A Starlink atrai os grupos que mantêm a floresta em pé – povos Indígenas e comunidades tradicionais, profissionais de órgãos de fiscalização, de educação, de saúde e ativistas que trabalham na região amazônica. Para eles, a internet é uma ferramenta que pode abrir oportunidades de telemedicina, educação a distância, articulação política, comércio, lazer, proteção contra abusos e violações de direitos humanos, programas de formação profissional e até mesmo denúncias de tentativas de destruição da natureza.

Uma das preocupações de José Galiza é com a ausência de letramento digital nas comunidades – como é chamada a compreensão e capacidade de interpretar, criar e desenvolver habilidades de leitura e escrita no cenário tecnológico, assim como garantir a segurança no uso das novas ferramentas. Em outubro, quando chegou com a antena Starlink a São Rosário, Galiza pediu aos moradores do quilombo que acessem apenas conteúdos confiáveis nas redes e usem a internet como ferramenta para monitorar o que acontece no território e combater a grilagem, o desmatamento e as queimadas. Galiza também enfatizou a importância dos cursos de empreendedorismo para que os Quilombolas possam atuar na bioeconomia. “Bioeconomia é a linguagem que está sendo usada, mas eu chamo de Economia Preta Quilombola. A nossa economia é baseada na coletividade e precisamos nos fortalecer diante desse tema, mas, para isso, temos que nos qualificar”, diz.

Os alertas de Galiza fazem sentido, sobretudo porque a antena Starlink também já faz parte do kit básico dos destruidores da floresta. Há atualmente provas abundantes, no radar da Polícia Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), de como garimpeiros rapidamente tiraram proveito do mundo conectado oferecido pela Starlink para ações ilícitas: trocam informações antecipadas sobre prováveis operações de fiscalização antigarimpo, fazem negócios enquanto arrancam ilegalmente ouro de áreas protegidas, ou simplesmente divulgam posts no TikTok e falam com as famílias. Somam-se a eles madeireiros, grileiros e narcotraficantes, além de latifundiários e operadores de mineradoras transnacionais.

“A Starlink quer vender o produto dela. Assim como vende para a gente enquanto Quilombola e povo da floresta, vende para qualquer um. E não há nada que possamos fazer a respeito”, resume Galiza.

Para Bolsonaro, Musk é o “mito da liberdade”

Desde que o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) autorizou a entrada da empresa de Musk no país, o Estado brasileiro não apresentou nenhum estudo de impacto sobre sua atuação na região amazônica, tampouco promoveu um debate público sobre a necessidade de eventual regulamentação adicional.

A sintonia de Musk com a extrema direita global é visível. Em maio de 2022, Bolsonaro se encontrou com Elon Musk em Porto Feliz, no interior de São Paulo. Na ocasião, o multibilionário foi condecorado com uma medalha de honra. Após uma reunião a portas fechadas, Bolsonaro afirmou que Musk era “um mito da liberdade” por ter comprado o Twitter. Várias vezes, durante a visita, o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, disse que os satélites da Starlink ajudariam no monitoramento da Amazônia, sem detalhar como isso ocorreria. Perguntado se os satélites não poderiam dar a Musk informações privilegiadas de interesse nacional, Faria negou. “Eles é que estão abrindo mão da soberania deles para nós”, alegou. O ministro da Casa Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira (PP-PI), chegou a postar em suas redes a foto de Musk com a medalha que recebeu.

A propagação da Starlink é tão veloz que há risco concreto de monopólio, na visão de especialistas ouvidos por SUMAÚMA. A iniciativa pertence a um bilionário estrangeiro errático e inconfiável, com claros interesses políticos. Há ainda uma coleta de dados sensíveis concentrada nas mãos de um único player – um conjunto de informações referentes a geolocalização e frequência de uso, e tudo isso em uma região estratégica do mundo. Finalmente, a chegada da internet a comunidades tradicionais pode ocasionar mudanças culturais profundas, que deveriam ser monitoradas pelo poder público. Logo, se a expansão da conectividade desperta otimismo, há, igualmente, razões para preocupação.

Conexão cara, rara e ruim

A região Norte tem os piores indicadores de uso da internet no país, de acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2022, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), órgão multissetorial responsável por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da internet em solo brasileiro. Desde 2005 o órgão mede a conectividade nacional. Também segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “a baixa qualidade da conexão, a cobertura limitada e os preços exorbitantes são as principais características do acesso à internet na região Norte”. Fora das capitais, a oferta de internet costuma ser cara e ruim.

“Em Manaus, você paga 99 reais para ter acesso a 350 megabits de velocidade. Já em Coari [a 350 quilômetros a oeste], custa 300 reais por 10 megabits. Muito caro e por um serviço de má qualidade”, exemplifica Hemanuel Veras, que conduz uma pesquisa de doutorado sobre conectividade na Amazônia na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é membro do Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA), de Manaus. “Há muita diferença entre cidade e interior, e, no interior, entre a sede e a zona rural”, explica.

Levar cabos de fibra óptica através de zonas de mata densa e rios de grandes dimensões demanda investimentos consideráveis, o que torna o empreendimento pouco atrativo para o setor privado. “A conexão vai até o centro do município, mas para ali. A última milha, o assinante precisa pagar, porque para o provedor não compensa comercialmente”, afirma Fabio Storino, especialista em direitos digitais do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação e coordenador nacional da pesquisa TIC.

No passado, antes da entrada da Starlink, dois programas federais tentaram mitigar problemas de conectividade, instalando redes de transporte de fibra óptica em rios da região amazônica. Em 2014, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Exército Brasileiro firmaram um acordo para realizar o Projeto Amazônia Conectada, que garantiria conectividade aos moradores de cidades ribeirinhas. Em 2016, a iniciativa levou fibra óptica até Manaus, capital do Amazonas. Um trecho de 220 quilômetros entre as cidades de Coari e Tefé, ambas no Amazonas, viria em seguida. Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o projeto “acabou se restringindo principalmente ao uso do Exército, sem beneficiar diretamente a população local”.

O outro projeto, intitulado Programa Norte Conectado, faz parte do Programa Amazônia Integrada Sustentável (Pais), proposta do Ministério das Comunicações que complementa o Projeto Amazônia Conectada. Anunciado em setembro de 2021, durante o governo Bolsonaro, tinha como objetivo expandir a infraestrutura de comunicações na região amazônica por redes de fibra óptica. Mantido pelo governo Lula sem alterações visíveis, o Norte Conectado consiste em construir oito infovias em rios para conectar órgãos públicos, como escolas, universidades, hospitais e tribunais, com cobertura total prevista de 12 mil quilômetros e cerca de 10 milhões de habitantes em 59 municípios, ao custo de 1,35 bilhão de reais, oriundos do leilão do 5G.

Em agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Santarém para inaugurar a Infovia 01 do Norte Conectado, investimento de 165 milhões de reais, que liga a cidade paraense a Manaus. “Esses programas são pouco transparentes até agora sobre como isso está chegando até o usuário final, até o cidadão”, critica o pesquisador Hemanuel Veras.

A Starlink chegou dominando

O então ministro das Comunicações, Fábio Faria, deixou claro o interesse do governo Bolsonaro na Starlink em e-mail endereçado a Elon Musk em outubro de 2021: “É impossível conectar toda a região amazônica sem satélites”, disse Faria, na mensagem obtida via Lei de Acesso à Informação e publicada pelo Brasil de Fato em março do ano passado. “A Starlink e o Brasil podem se tornar grandes parceiros. Neste momento ainda existem 15 mil escolas rurais a serem conectadas. É importante aproveitar as vantagens dos satélites de baixa órbita”, continuou.

O ministro bolsonarista fazia referência à principal diferença entre os satélites da Starlink e seus antecessores, de empresas como Viasat e HughesNet, ambas dos Estados Unidos. Estes são chamados geoestacionários: ficam fixos no céu a uma distância de mais de 35 mil quilômetros. A Starlink, em contraste, emprega uma miríade de satélites pequenos e móveis, a uma distância do solo de apenas 550 quilômetros. Até outubro, essa constelação tinha 4.988 satélites, com planos de expandi-los até 12 mil nos próximos anos. A revolução digital que modifica o céu está, inclusive, preocupando – e muito – os astrônomos.

O resultado são pacotes de dados bem mais robustos, e por preços melhores. O plano Viasat Infinity custa de 500 a 600 reais por mês, com franquia de 160 gigabytes e velocidade de 30 megabits por segundo. Isso significa, por exemplo, que apenas uma pessoa pode fazer chamadas de vídeo por vez, e que se um usuário assistisse a duas horas de Netflix em alta resolução por dia, ao longo de um mês ele consumiria toda a sua cota de dados. Já a Starlink, nos preços atuais, tem um custo único de 2 mil reais pela compra do equipamento e 184 reais a mensalidade (aos quais se somam cerca de 50 reais em impostos), com a promessa de dados ilimitados e sete vezes mais velocidade, com 220 megabits por segundo.

Como mostra a troca de e-mails da equipe bolsonarista com a Starlink, o governo do extremista de direita exerceu pressão sobre a Anatel para que agilizasse a autorização para o funcionamento da empresa no Brasil. Em uma dessas mensagens, o secretário de Telecomunicações do Ministério da Comunicação comandado por Fábio Faria, Artur Coimbra de Oliveira, dizia: “Já estamos conversando com a Anatel sobre a outorga da Starlink (…)”, num indício de ingerência. Um integrante do Ministério das Comunicações de Bolsonaro confirmou a SUMAÚMA que funcionários da pasta conversaram com conselheiros da Anatel para agilizar a operação da Starlink no Brasil, mas negou que a ação violasse a autonomia da agência. Procurado pela reportagem, o ex-ministro Fábio Faria não se manifestou.

Com a autorização obtida em janeiro de 2022, a Starlink começou a operar no território brasileiro quatro meses depois, inicialmente nas regiões Sul e Sudeste. Na época, Elon Musk se encontrou com Bolsonaro no interior de São Paulo e se dizia “superanimado por estar no Brasil para o lançamento da Starlink” para 19 mil escolas não conectadas em áreas rurais da Amazônia.

As promessas e o aparente ânimo do multibilionário acabaram aí. Além da doação de antenas a somente três escolas no Amazonas, até junho de 2022, como parte de um programa-piloto previsto para expirar em setembro, não houve mais nenhuma ação pública relacionada à Starlink – a reportagem procurou o Ministério das Comunicações e as escolas para saber da situação, mas não obteve resposta. As vendas comerciais à região Norte começaram em novembro de 2022.

“No governo Bolsonaro, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, se comportou como se a Starlink fosse a ‘grande salvação’ para a internet na Amazônia. Ele operou como facilitador da relação da Starlink com a Anatel e acelerou o processo de autorização, enquanto outra empresa [a britânica Oneweb] não conseguiu licença com a mesma velocidade”, afirma Oona Castro, diretora de desenvolvimento institucional do Núcleo de Pesquisa Estudos e Formação (Nupef), organização social do terceiro setor voltada para o uso seguro de tecnologias. “O governo brasileiro fez uma cena e prometeu conectar todas as escolas rurais da Amazônia, mas nunca indicou quem iria pagar. Do jeito que foi feito, foi só muita mídia e muito auê.” A instalação da Starlink na Amazônia ficou sob encargo de atores privados, o que não a impediu de proliferar.

Comunidades tradicionais driblaram omissão do Estado

Por ora, a grande aposta do governo Lula para conexão na região amazônica é o programa Norte Conectado. A reportagem entrou em contato com o Ministério das Comunicações para entender quais as diferenças do programa atual em relação ao implementado no governo Bolsonaro, mas não obteve resposta. No fim de setembro, o governo Lula também anunciou a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, que promete levar a conectividade a todas as instituições educacionais de ensino básico do país até 2026.

Tasso Azevedo, coordenador-geral e fundador do MapBiomas, é um dos idealizadores da rede Conexão Povos da Floresta, organizada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) em parceria com dezenas de organizações da sociedade civil e empresas. Essa aliança pretende levar a internet banda larga a 5 mil aldeias e comunidades isoladas até novembro de 2025. É a mais ambiciosa iniciativa da sociedade civil para tentar conectar a região amazônica, diante da omissão e incapacidade histórica do Estado de fazer isso. “O Conexão Povos da Floresta não é sobre a Starlink, mas sobre formar uma rede forte e representativa dos povos da floresta na Amazônia”, enfatiza Tasso.

O projeto tomou forma ao longo de 2022 e realizou a primeira instalação da fase-piloto em março deste ano. Em junho começou a ganhar escala e até agosto já tinha 200 aldeias e comunidades conectadas, mais de 5 mil pessoas cadastradas e uma estimativa de cerca de 15 mil cidadãos impactados. Nesta semana, chegará a 300 aldeias e comunidades conectadas na rede. Tasso explica a sua importância: “Quais são as duas principais demandas das populações Indígenas, Quilombolas e de Ribeirinhos hoje? A primeira e mais importante, obviamente, é a demarcação de suas terras”, afirmou Tasso. “Logo depois é a conectividade. Porque a conectividade representa melhorar a segurança, o acesso à saúde, à educação, à capacidade de se articular e se organizar.”

Advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Júnior Nicácio Wapichana fortalece esse depoimento. Por iniciativa própria o CIR instalou uma antena Starlink na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Um dos seus principais usos, até aqui, é conseguir fazer denúncias de invasões com celeridade. “Facilitou muito denunciar para conter as invasões. Ensinamos operadores Indígenas a fazer protocolos de denúncia, e o documento chega rapidamente ao órgão público de segurança”, conta Nicácio Wapichana. “A internet também é utilizada como meio de divulgar atividades culturais, de educação digital nas escolas, nos postos de saúde”, complementa.

Ivo Macuxi, também advogado do Conselho Indígena de Roraima, diz que as “lideranças [Indígenas] têm demandado a Starlink para facilitar a comunicação. Como em 99% da Terra Indígena Yanomami só se consegue acesso por via aérea, a comunicação via internet é importante para qualquer tipo de emergência”. Macuxi cita o exemplo de uma antena instalada no polo base de Surucucu, no extremo oeste da reserva Yanomami, próximo à fronteira com a Venezuela em Roraima. “Os profissionais de saúde têm falado como facilita o diálogo [com órgãos públicos] e para chamar socorro para pacientes em estado grave.” Tasso Azevedo relembra também o caso de um Indígena, no Vale do Javari, que passou mal durante uma incursão de barco para vigilância do território. Devido à conexão a bordo com uma antena Starlink móvel, ele foi imediatamente atendido por um médico a distância. A consulta diagnosticou apendicite a tempo de conseguirem resgatá-lo para o tratamento.

O Conexão Povos da Floresta envia às comunidades um kit com “a infraestrutura necessária para a conexão com consistência e segurança”, explica Tasso Azevedo. Aos locais onde não há energia são enviadas placas solares e baterias de longa duração. O kit contém um roteador customizado que cria uma rede local – até 300 pessoas podem estar conectadas ao mesmo tempo e o tráfego de dados, por uma VPN (Rede Privada Virtual), protege a privacidade de quem navega. Essa é considerada uma medida de segurança que esconde o conteúdo da navegação até mesmo da Starlink como provedora de internet. “Há uma pequena redução de velocidade, mas compensa com muito mais segurança”, assegura o coordenador do MapBiomas.

As regras de uso de todas as redes são definidas por cada comunidade, e sempre é escolhido um facilitador, morador que ficará responsável por solucionar possíveis problemas de conexão. “Só quem já perdeu oportunidades por não ter acesso à informação vai entender que hoje é uma data que ficará marcada para o resto da nossa vida”, disse Izabel Domingas da Silva, de 33 anos, escolhida pela comunidade de São Rosário como facilitadora. Os moradores do quilombo decidiram fazer uma assembleia para debater, de forma coletiva, quais serão as regras de uso da internet: quem pode usar, por quanto tempo e com quais objetivos. “O projeto quer garantir um acesso seguro e consciente da internet”, garante Tasso.

Garimpeiros on-line

O Ibama informou à reportagem de SUMAÚMA que até o fim de agosto 32 antenas Starlink tinham sido apreendidas em zonas de garimpo. Já havia registros de antenas de operadoras, como a Viasat, sendo usadas por garimpeiros, mas nunca nessa escala.

Questionada sobre como o uso da internet por garimpeiros pode interferir em sua atuação e se planeja alguma ação a esse respeito, a Polícia Federal afirmou por e-mail à reportagem que “não é possível responder, por se tratar de informação que pode comprometer o objetivo de ações investigativas”.

Pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA), o geógrafo Estevão Benfica Senra acredita que a utilização da antena pelo garimpo tende a se alastrar. A Starlink pode ser levada nas costas, e depende só de uma placa solar para funcionar. Entre os principais usos relatados pelos garimpeiros está a formação de redes em grupos on-line para monitoramento de operações de fiscalização e a organização da logística.

Os avisos sobre as operações acontecem, em parte, em grupos de WhatsApp com nomes como “Amantes do Garimpo” e “Garimpo de Ouro”, nos quais os garimpeiros trocam informações em tempo real sobre ações de enfrentamento, o seu dia a dia e oportunidades de trabalho. Quando uma operação é avistada em um ponto, rapidamente mensagens são disseminadas nesses grupos, alertando sobre o fato de que forças de segurança estão a caminho, permitindo que garimpeiros se escondam.

“O efeito-surpresa das operações desaparece, e assim elas perdem efetividade”, afirmou Benfica Senra. “Também coordenam o envio de insumos e pessoas, aliciam jovens, organizam a cadeia produtiva. O garimpo funciona muito em rede, e depende de uma cadeia supercomplexa. É preciso combinar a hora certa do avião, depois tem o freteiro, depois o Uber. A conectividade ajuda a articular toda a cadeia”, detalha o geógrafo.

No Facebook, há um intenso comércio de máquinas e vagas de emprego para funções de garimpeiro e de auxiliar, como cozinheira. Há também anúncios de revenda de antenas Starlink, associando os equipamentos diretamente a pontos de garimpo, por preços maiores do que os praticados diretamente no site da empresa.

A reportagem de SUMAÚMA entrou em contato com um desses revendedores e, segundo ele, as vantagens de seu serviço são duas: um prazo de entrega das antenas de três a quatro dias em qualquer lugar do Brasil, em vez das quatro a seis semanas da empresa estadunidense, e também suporte técnico. A Starlink, no momento, não instalou serviços de atendimento ao consumidor no Brasil. O usuário que deseja falar com a empresa precisa escrever para a assistência nos Estados Unidos. Há relatos de falsos revendedores, que prometem entregar as antenas mas não o fazem.

No TikTok e no YouTube, por sua vez, diversos garimpeiros postam vídeos sobre as próprias antenas Starlink em pontos de garimpo, exibindo o fascínio com a tecnologia.

Carolina Grottera, professora de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), estuda a cadeia do garimpo no Baixo Tapajós, no estado do Pará, na Amazônia brasileira. Ela verificou que “a internet contribui para o boom do garimpo de várias formas”, incluindo o anúncio de vagas, a venda de maquinário e de produtos e o lazer. “A internet dentro do garimpo torna a própria vida no garimpo mais atrativa, pois os garimpeiros podem ficar lá dentro por semanas, mas não ficam isolados do mundo e de suas famílias. Podem até enviar dinheiro para as famílias via Pix, têm entretenimento”, observa Grottera. “Vemos também os garimpeiros influencers. Estes últimos ajudam muito a atrair mais pessoas para a atividade sob a falsa expectativa de enriquecer no garimpo.”

Desinformação na palma da mão

Além do uso da Starlink por criminosos, sua chegada levanta inúmeras inquietações com os impactos culturais nas comunidades tradicionais. “As informações estão ali na palma da mão de qualquer parente, que pode se deparar com questões que não são tão boas para a própria comunidade e gerar desequilíbrio. Os jovens podem ter informações que prejudicam primeiro a família, depois a comunidade”, apontou Nicácio Wapichana. “Por exemplo: pode haver uma influência por conteúdos de violência, ou mesmo aliciamento pelo crime organizado. Esse risco é uma realidade, precisamos fazer um controle interno da comunidade.”

Joaquim Belo, secretário de relações internacionais do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, afirma que esse problema deve ser enfrentado. “A conexão coloca a gente num mundo globalizado, e aí interfere diretamente na vida da comunidade. O que dá sustentação à floresta é o modo de vida das pessoas, e é preciso um cuidado geracional com nossos jovens, que são os futuros guardiões.”

A antropóloga Fernanda K. Martins, diretora do InternetLab, centro de pesquisa nas áreas de direito e tecnologia, está, no momento, iniciando um estudo para avaliar quais são os efeitos culturais e sociais da entrada da Starlink nos territórios. Ela cita uma pesquisa anterior sobre uso de aplicativo de mensagem, cujos dados permitiram constatar como a desinformação em relação à vacina contra a covid-19 circulava dentro de territórios Indígenas. “Não é possível falarmos das transformações da internet sem falar nesses impactos e sem mitigar os impactos que não são positivos.”

O Conexão Povos da Floresta tem uma série de protocolos para evitar potenciais efeitos negativos e estimular o uso responsável da internet pelas comunidades. O projeto conta com cinco grupos de trabalho – de saúde, educação, proteção territorial, empreendedorismo e cultura e ancestralidade e proteção territorial –, cada um deles com estratégias próprias. Em cada comunidade há um facilitador e um curso de formação para a população.

Segundo Tasso Azevedo, o mais importante é levar a conexão com os equipamentos adequados e permitir que a comunidade controle o acesso e as regras de utilização. Além disso, a comunidade deve estar informada sobre o funcionamento da internet e os riscos envolvidos, promovendo um uso consciente, com debates coletivos. Ele acrescenta ser essencial ter condições materiais de segurança, como VPN e aplicativos de controle.

Risco de Monopólio de Elon Musk

A Starlink, no momento, opera virtualmente e sem concorrentes. “Estamos falando de um cenário altamente concentrado e de um player que não é só um provedor de internet, mas que flerta com interesses políticos e com um projeto de hegemonia”, alerta Oona Castro, referindo-se à associação de Elon Musk com a extrema direita global.

A especialista cita a coleta de dados como uma área especialmente delicada: “Ao acessar a internet via Starlink, no mínimo você dá dados de acesso e de frequência. Embora tenhamos uma Lei Geral de Proteção de Dados, Elon Musk já declarou que trabalha com os dados que recebe”, disse Oona Castro. “Mesmo que não haja dados detalhados, há um conjunto de dados estratégicos, como de geolocalização e de frequência de uso, de uma região estratégica do mundo. Estamos falando em deixar esses dados em uma empresa privada.”

Diante desses e de outros problemas – como, por exemplo, o lixo espacial produzido pela Starlink, e também mudanças na observação do céu, porque os satélites podem ser vistos transitando –, Castro demonstra preocupação com a falta de estudos de impacto e de acompanhamento do Estado sobre como isso afeta as vidas, os territórios e o meio ambiente. “É uma entrada bastante desgovernada e descoordenada de outras políticas públicas.”

Fernanda K. Martins, do Internetlab, deixa explícita a “angústia” com o fato de a infraestrutura digital da Amazônia estar nas mãos de Elon Musk: “Ao comprar o ex-Twitter, ele já demonstrou a falta de cuidado que tem com pautas muito caras ao Brasil, como as climáticas e o combate ao discurso de ódio”.

Como reduzir danos?

Procurada por e-mail, no endereço dos Estados Unidos, a Starlink não respondeu às mensagens enviadas pela reportagem de SUMAÚMA sobre a expansão da internet na Amazônia. O Ministério das Comunicações também não se manifestou.

Questionado sobre a possibilidade de bloquear o sinal de internet em áreas de garimpo ilegal, o Ibama respondeu que “iniciou tratativas com Anatel sobre o tema; no entanto, ainda não foi concluída solução técnica”. Fontes dos órgãos de fiscalização confirmaram a SUMAÚMA que a medida está sob a análise do governo. Sobre esse assunto, a Anatel disse que “o uso de terminais de comunicação via satélite em determinada localidade não constitui, por si só, irregularidade do ponto de vista da prestação de serviços de telecomunicações”. A agência reguladora informou ainda que “ações que venham a coibir o uso de equipamentos de comunicação em determinada circunstância podem ser feitas pela Anatel em colaboração com ações da Polícia Federal”.

Especialistas dizem que a lei atual não prevê a suspensão do serviço, e que, em vez disso, os dados dos acessos dos garimpeiros podem ser usados para investigações. “O Marco Civil [da internet] determina a guarda de logs de acesso para fins de investigação de crimes”, disse Ronaldo Lemos, presidente da Comissão de Tecnologia da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, se referindo à obrigação de os provedores guardarem os registros de conexão de cada acesso à internet, com informações como data e hora de cada sessão. “Se a empresa cumprir a lei brasileira, esses dados poderão ser usados para investigar e até mapear atividades ilegais na floresta, sempre mediante autorização judicial.”

Em áreas muito isoladas, os satélites da Starlink continuarão a ser a única opção. A Amazon planeja pôr os serviços do Kuiper em operação a partir do fim do ano que vem. Outras empresas de satélite tentam correr atrás desse mercado, como a Oneweb, que recebeu autorização da Anatel para operar em julho, e a Viasat, que lançou um novo satélite para as Américas que não entrou em operação. Enquanto isso, entre a euforia e o temor, a Starlink continua a se espalhar pela Amazônia.


Reportagem e texto: André Duchiade e Catarina Barbosa
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Malu Delgado (chefia de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum