NIC.br

Ir para o conteúdo
23 JUL 2018

Pode isso, youtuber? Crescem tentativas de impor limites a ídolos infanto-juvenis, mas regras não são claras


G1 - 23/07/2018 - [gif]


Autor: Rodrigo Ortega
Assunto: Regulação na Internet

Eles deixam milhões de crianças vidradas e levam adultos a discutir sobre controle. Para especialistas, pais devem ver juntos e orientar. G1 encarou maratona de 10 horas de youtubers; VÍDEO.

Nem tudo é festa no mundo dos youtubers infanto-juvenis no Brasil. Se os donos dos maiores canais no YouTube atraem cada vez mais seguidores com brincadeiras e piadas, crescem também as polêmicas e conversas para delimitar o que eles podem fazer.

O G1 encarou uma maratona de youtubers. Veja acima e leia mais abaixo.

Dos cem maiores canais do YouTube Brasil, metade atinge o público de até 12 anos, segundo o estudo “Geração YouTube”, feito na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Estes canais têm entre 4,6 milhões e 30 milhões de seguidores.

Enquanto as crianças seguem, adultos também tentam correr atrás. O tema está na pauta de entidades de defesa da infância, estudiosos, anunciantes, órgãos reguladores, a Justiça, o Google (dono do YouTube) e os pais. Veja reações recentes:

  • Júlio Cocielo, 6º youtuber mais seguido do país, foi criticado e perdeu patrocínios com frases vistas como racistas. O Ministério Público Federal (MPF) diz ao G1 que analisa abrir inquérito sobre o caso.
  • No início deste ano, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) advertiu os irmãos Felipe e Luccas Neto (3º e 5º mais seguidos do Brasil) por publicidade velada – ou seja, fazer propaganda sem deixar isso claro ao público.
  • Uma grande denúncia sobre publicidade velada em vídeos em que se abre produtos (o chamado "unboxing"), alguns enviados pelos próprios fabricantes, é investigada pelo MP-SP.
  • O MPF já pediu para o YouTube colocar avisos no site de que a publicidade infantil é abusiva e ilegal, mas o Google se recusou e o caso foi à Justiça.
  • Uma das reações do Google é investir no YouTube Kids, versão para crianças, mas mesmo lá há vídeos com conteúdo questionado.
  • Discute-se em órgãos públicos a necessidade de classificação etária indicativa em vídeos na internet, como há no cinema e TV.

Mas imagina ter que classificar as 400 horas de vídeo publicados por minuto no YouTube... Apesar de muita gente apontar conteúdos impróprios para certas idades, não se sabe como seria esse trabalho de avaliar e restringir.

A parte da publicidade também é difícil. A situação legal da propaganda infantil no Brasil não é clara: ela é considerada abusiva, mas não há punição prevista em lei. E nos vídeos de youtubers, quase sempre cheios de marcas, é difícil separar o que é anúncio ou não.

Enquanto isso, inquéritos e ações na Justiça não andam na mesma velocidade frenética dos sucessos no YouTube. No caso de Cocielo, a reação de internautas nas redes e a perda de anunciantes foi mais veloz que a dos órgãos legais.

Mas um limite é mais certo e eficiente: o dos pais. O que especialistas indicam é mais difícil que apenas proibir. Adultos responsáveis devem assistir juntos e orientar as crianças. Foi para testar esse conselho que o G1 fez a maratona do vídeo acima.

Entenda a seguir em que pé está a discussão e as ações para impor limite aos ídolos de vídeos na web – de restrições legais a regras dentro de casa.

Nocaute no 'unboxing'?

A advogada paulistana Claudia Almeida, 42 anos, não se ligava muito nisso até que viu a filha caçula, aos 4 anos, dando play em uma youtuber mirim mostrando uma boneca.

“Ela achava que estava vendo uma amiga brincar com ela. Mas era uma criança que foi colocada para vender algo para outra criança. É um plano desleal”, diz Claudia.

“Comecei a estudar os youtubers por causa da minha filha”, ela conta. Claudia foi advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e, neste ano, foi palestrante em disciplina sobre o tema na Fundação Getúlio Vargas.

O incentivo ao consumo é o campo em que os youtubers enfrentam mais adversários hoje. O sucesso de vídeos de “unboxing” é aproveitado por empresas que enviam a celebridades seus itens, os chamados “recebidos”.

"A criança que faz o vídeo também é vítima. Ela não sabe que está cometendo uma violação. É claro que são os pais deles que estão incentivando. Veem os filhos ganhando muito dinheiro e ficam cegos", diz Claudia.

O tipo de vídeo da boneca que ela achou desleal pode mesmo ser considerada abusivo no Brasil por dois motivos:

  1. O Código de Defesa do Consumidor diz que o anúncio deve ser identificado como publicidade “fácil e imediatamente”. Propaganda disfarçada de brincadeira não vale.
  2. Em 2014, foi considerada “abusiva a publicidade dirigida à criança”, com uso de estratégias como linguagem infantil, uso de pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil, personagens ou apresentadores infantis e outras.

A resolução acima é do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão hoje ligado ao Ministério dos Direitos Humanos. Vários advogados e ONGs de defesa das crianças consideram que ela torna ilegal qualquer propaganda voltada ao público infantil.

Outras entidades acham que deve apenas haver certos limites para que a publicidade não seja nociva às crianças. O Conar, por exemplo, aceita estes anúncios, desde que não tenha certos elementos como verbos imperativos (“compre”, “use”) ou a publicidade velada.

Em fevereiro de 2018, o Conar advertiu os irmãos Neto (Felipe, 22 milhões de seguidores, e Luccas, 17 milhões) por um vídeo em que eles pediam para crianças participarem de um sorteio por telefone. Cada ligação custava R$ 6. Eles tiraram o vídeo do ar.

O Google joga essa responsabilidade nos youtubers. A empresa diz que ao subir o vídeo, eles devem marcar se ele "contém promoções pagas, como colocação paga de produto, patrocínio ou endosso". Os vídeos passam a ter este aviso no YouTube e são excluídos do YouTube Kids.

Mas quem garante que eles vão marcar? É fácil achar vídeos infantis de “unboxing” e “parcerias" com lojas sem esta indicação, vide a maratona do G1.

'Trollar' a lei não dá

Não é só o consumismo que consome os pais. O papo de alguns youtubers é questionado por incentivo ao bullying e violência (as "trolladas" com pouca noção), alimentação inadequada, preconceito...

No dia 30 de junho, Júlio Cocielo (16 milhões de seguidores) escreveu no Twitter que o jogador Mbappé "conseguiria fazer arrastões top na praia". Internautas apontaram racismo neste e em outros comentários antigos. Cocielo perdeu patrocínios, pediu desculpas e apagou mensagens.

A reação social foi rápida, mas cabe também punição legal? Neste caso, a questão não é ausência de limites (racismo é crime no Brasil), mas levar regras do “mundo real” à web.

“É importante buscar o que já existe na legislação e aplicar no ambiente digital. Tudo que vale fora também vale dentro da web”, diz Pedro Hartung, advogado do Instituto Alana.

Luciana Corrêa, coordenadora do ESPM Media Lab, autora da pesquisa “Geração YouTube”, concorda: “Temos o Estatuto da Criança e do Adolescente, que é muito bom. A questão é respeitar. E saber como fazer isso no ambiente digital”. 

Mas Cocielo, por exemplo, espalhavou por anos mensagens vistas como preconceituosas (ele admitiu o erro no vídeo de desculpas e alegou “ignorância”). Mesmo se ele for punido depois, milhões de crianças já viram o conteúdo. Como prevenir que isso aconteça?

“Não existe censura prévia no Brasil”, descarta Pedro Hartung. “Um caminho seria saber como reforçar a classificação indicativa destes conteúdos”.

Inclassificável?

O YouTube foi criado para usuários acima de 18 anos. Mas o Google sabe que os mais novinhos assistem, tanto que indica que os pais acompanhem filhos menores de idade no site e usem ferramentas de restrição de conteúdo.

Alguns vídeos podem ser barrados para perfis menores de 18 anos, mas não há um sistema de indicação etária como no cinema e na TV. Novamente, o Google diz que a responsabilidade é dos produtores. Eles podem indicar a idade ideal para ver o vídeo, mas o recurso é pouco usado.

Quando se busca "age restriction youtube" no Google, alguns dos primeiros resultados são truques de como burlar esta restrição... em tuturiais no próprio YouTube.

Em abril, o Ministério da Justiça convidou para um evento em Brasília especialistas para discutir propostas sobre uma possível classificação indicativa. Mas ainda é só ideia. Ao G1, o ministério diz que ainda não trabalha para criar equipe ou regras para essa possível classificação.

Entre várias perguntas do G1 sobre o público infantil, a assessoria do Google só se esquivou quando perguntada se a empresa apoiaria algum projeto do governo e entidades para ter classificação indicativa para crianças como na TV e cinema: “Não temos nada a comentar”.

A empresa bateu na tecla da opção de uso do YouTube Kids, que tem várias opções de restrição e monitoramento dos pais, diz que aprimora o serviço através de parcerias e mais ferramentas de controle.

Mesmo os órgãos que pedem mais segurança admitem que a questão é difícil. “Vários elementos dificultariam colocar uma classificação em prática”, diz Kelli Angelini, gerente jurídica no Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR.

“Mandar o vídeo antes, como um filme, é inviável. A classificação seria uma forma de consulta, mas não tão efetiva”, diz Kelli.

Uma das entidades que mais busca respostas na Justiça sobre estas questões é o Instituto Alana, ONG que promove o direito da criança. “Recebemos diversas denúncias no nosso site sobre youtubers, que têm aumentado. Os pais estão muito incomodados”, diz Pedro Hartung.

Olá amiguinhos, aqui é o Ministério Público

Os problemas acima já chegaram ao MP. Veja denúncias e investigações:

  • O Alana denunciou 15 empresas por vídeos de “unboxing” de brinquedos, roupas, mochilas... Entre os exemplos, eles citam o canal de Julia Silva, visto na maratona acima. Mas a denúncia é contra as empresas, não os youtubers. Para a ONG, elas enviam os produtos para fazer publicidade abusiva e ilegal. Elas negam. O MP-SP abriu inquérito, questionou as empresas e ainda estuda se vai denunciá-las.
  • Em abril de 2018, o MPF-SP abriu inquérito, em andamento, para saber se há “irregularidade no YouTube quanto à ausência de classificação indicativa de conteúdo audiovisual”.
  • As declarações de Julio Cocielo, apontadas por internautas como racistas, também podem gerar punição. O MPF-SP confirmou ao G1 que está tratando de denúncias sobre o caso e estuda se vai abrir um inquérito.
  • Em 2016, o MPF-MG pediu para o Google incluir em todo o site um aviso de que a publicidade infantil é proibida e abusiva. A empresa se recusou e ganhou: no fim de 2017 o juiz disse que o Google não é obrigado a colocar aviso, e que cada vídeo deve ser analisado individualmente. A assessoria do MPF-MG diz ao G1 que os procuradores recorreram.
  • No dia 18 de julho, o Ministério Público do Distrito Federal abriu inquérito sobre a coleta ilegal de dados de crianças brasileiras pelo YouTube. O site puxa informações de todo mundo que vê seus vídeos (nome, e-mail, IP, até dados telefônicos). O MP diz que fazer isso sem que os pais saibam é ilegal.

O último inquérito tem um argumento dos procuradores que mostra como o site, apesar de se dizer “projetado para maiores de 18 anos”, não é usado só pelos maiores:

“Uma simples busca no YouTube por vídeos com as palavras 'para crianças' retorna 16,7 milhões de resultados”.

Quem é esse youtuber aí, papai?

Então os pais podem ficar tranquilo e esperar a Justiça trabalhar, certo? Não...

O caminho é “trabalhar com uma dupla proteção: normas legais e também ter os pais acompanhando para dizer o que é adequado ou não”, diz Kelli Angelini.

“Os pais não estão sabendo lidar com isso”, diz Guilherme Vanoni Polanczyk, psiquiatras de crianças e adolescentes e coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental da USP. “Muitos não têm ideia do que os seus filhos estão vendo”.

“Até 2 anos elas não devem ter contato nenhum com mídia eletrônica. Até a idade pré-escolar, devem ter o menor contato possível. E para qualquer idade, a melhor estratégia é sempre assistir junto com elas”, indica o psiquiatra.

O mau uso do YouTube pode estar ligado a agressividade, ansiedade e até mau desempenho escolar. “Não é necessariamente a causa, mas pode agravar estes problemas”, diz Guilherme.

O prejuízo para a linguagem da criança novinha vidrada nos vídeos pode ser irreversível, diz o psiquiatra. Mas mesmo para adolescentes, o hábito pode ajudar a levar à depressão, por exemplo.

A boa notícia, segundo Guilherme, é que o fato de os pais assistirem junto aos filhos, conversarem e estimularem a reflexão sobre os vídeos pode mudar estes efeitos.

“Há estudos que mostram que, mesmo para vídeos que podem prejudicar a criança, se assistidos junto dos pais, o efeito negativo pode sumir ou até se tornar positivo”, ele diz.

Não é brinquedo, não

“Não é porque a criança tem habilidade de navegação que ela tem habilidade emocional. Minha dica para o pai que tem uma criança fã de youtubers em casa é: tire o fone de ouvido dela e aumente o som”, diz Luciana Corrêa.

Ela acha que o caso de Júlio Cocielo não deve ser generalizado “Muitos youtubers mirins fazem um trabalho de qualidade. Um caso como do Cocielo prejudica estes bons trabalhos. Há influenciadores que fazem coisas com cuidado. “

Até para achar os "influenciadores" adequados é preciso ficar de olho junto com as crianças, ela indica.

Após o susto com a filha vendo "unboxing" e o trabalho com o tema, Claudia dá conselho parecido:

“YouTube não é brinquedo. Não dá para a criança ficar vendo sozinha, dizer 'toma seu tablet e me deixa em paz’. Também não dá só para proibir, deixar a criança numa redoma. Mas tem que falar porque está errado, para conscientizar.”

Mas além de ficar de olho em cada criança em casa, como melhorar a proteção coletiva? "Tem que reunir todos os atores. Criar como se fosse um código de ética coletivo", ela propõe. Aí será necessária uma maratona de bem mais de 10 horas de conversa.