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24 JAN 2019

O streaming vira o jogo


Gazeta do Povo - 19/1/2019 - [gif]


Autor: Anderson Gonçalves
Assunto: TIC Domicílios 2017

Com milhões de assinantes, reconhecimento artístico e adesão de cineastas de peso, serviços de vídeo sob demanda devem arrecadar mais que o cinema em 2019

A menos que você tenha passado o fim de 2018 isolado em uma cabana na mata, sem acesso a qualquer tipo de comunicação, em algum momento ouviu falar de Bird Box, ou se deparou com a imagem de Sandra Bullock com uma venda nos olhos. Isso se não estiver entre as mais de 45 milhões de pessoas que viram o filme produzido e exibido com exclusividade pela Netflix. Amparado em uma massiva campanha de publicidade que começou institucional e depois se tornou espontânea, a produção conquistou uma marca que seria inimaginável em um passado não muito distante: que um dos filmes mais vistos e comentados do ano passasse longe de uma sala de cinema.

Bem-vindos à era do streaming. Uma era que teve início de fato em 2010, quando a norte-americana Netflix se abriu para o mercado internacional, começando pelo Canadá e logo se expandindo para vários países. No Brasil, o serviço foi disponibilizado em setembro de 2011 com uma oferta tentadora: por R$ 15 ao mês, o assinante e sua família teriam acesso a um punhado de filmes e séries, para ver à vontade na TV ou no computador, com alta qualidade de som e imagem.

Nove anos depois do salto internacional da Netflix, a marca atingida por Bird Box é apenas um dos acontecimentos que tornam 2019 um ponto de virada do chamado SVoD (Subscribed Video on Demand, ou, na tradução literal, vídeos subscritos sob demanda). A mesma Netflix tem tudo para ser consagrada na principal premiação do cinema, o Oscar, com a produção Roma, de Alfonso Cuarón. Enquanto isso, os concorrentes vão a carga para fortalecer ainda mais o segmento. Além da Amazon, que há dois anos expandiu globalmente o Amazon Prime Video, três outras gigantes anunciaram para os próximos meses o lançamento de serviços de streaming: Disney, Warner e Apple.

Em meio a toda essa movimentação, a cereja do bolo é um estudo divulgado em dezembro do ano passado pela empresa de estatísticas Ampere Analysis. Segundo a pesquisa, o faturamento dos serviços de streaming em 2019 vai superar o das bilheterias de cinema. E a diferença não será pequena. A estimativa feita pela empresa é de que, enquanto as sessões de cinema deverão render US$ 40 bilhões, os vídeos sob demanda devem movimentar US$ 46 bilhões.

De acordo com a Ampere Analysis, uma das principais razões para muitas pessoas optarem pelo streaming em lugar do cinema é o preço do ingresso. “Há claramente um apetite por conteúdo entre alguns consumidores, independentemente de ser na tela grande ou em uma menor”, diz Toby Holleran, analista sênior da empresa, em entrevista ao site IBC 365. Tomemos como exemplo os números do Brasil, onde o plano mais barato da Netflix, que dá acesso a todo o conteúdo, sai por R$ 19,90 mensais. Já um único ingresso para cinema custa entre R$ 20 e R$ 30, em média (sem contar os gastos com pipoca, transporte, estacionamento, etc.).

Na palma da mão
A Netflix não divulga o número de assinantes por país, mas, extraoficialmente, fala-se em uma base de 8 milhões de usuários no Brasil, a terceira maior da empresa, atrás apenas dos Estados Unidos e do Reino Unido. Uma pesquisa divulgada no final do ano passado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) confirma a adesão do brasileiro ao streaming. Segundo o levantamento, 71% dos usuários de internet assistiram a vídeos, programas, filmes e séries pela internet em 2017. Em 2014 esse percentual era de 58%.

A pesquisa também traz dados sobre a frequência com que os usuários consomem esses produtos. Das 23,5 mil pessoas ouvidas em 350 municípios, 12% disseram ver filmes pela internet diariamente ou quase todos os dias. Para o coordenador da pesquisa, Winston Oyadomari, o crescimento do streaming está relacionado, entre outros fatores, ao acesso à internet de banda larga. “Nos últimos dez anos dobrou a proporção de usuários da internet no país. Com o desenvolvimento de novas plataformas e, especialmente, a possibilidade de usá-las no celular, a oportunibilidade de consumir produtos audiovisuais a qualquer hora do dia se tornou muito maior”, avalia.

A relação com o celular é fundamental nesse fenômeno, principalmente quando se observa que 96% dos entrevistados afirmam usar o aparelho para acessar a internet. Desses, 34% disseram utilizar apenas o celular para ver filmes e 22% para acompanhar séries. De olho nesse público, a maioria dos serviços já disponibiliza a opção de baixar o conteúdo para assistir off-line. “O fato de a maioria dos internautas serem de celular tem impacto para diversos mercados e em todos os hábitos de consumo. E, naturalmente, as empresas estão trabalhando cada vez mais com isso”, observa Oyadomari.

Ameaça ao cinema?
Quer dizer então que o cinema tradicional está com os dias contados?, perguntarão os mais apressados. A resposta é não, pelo menos por enquanto. Quem atesta são mais uma vez eles, os números. Mesmo com o avanço voraz dos serviços de streaming, o ano de 2018 bateu o recorde de bilheteria na história do cinema mundial. Foram US$ 41,6 bilhões arrecadados, montante 2,6% maior que em 2017. No Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), até o mês de novembro o público e a bilheteria gerais ainda eram inferiores a 2017. As produções nacionais, porém, já registravam 35,2% mais espectadores e uma bilheteria 14,5% maior que no ano anterior.

Para o analista Toby Holleran, da Ampere Analysis, há espaço para os dois mercados. “A chave para o cinema é entender que, embora os assinantes do SVoD sejam frequentadores de cinema mais ávidos, isso pode nem sempre ser o caso. Portanto, a experiência compartilhada de assistir a um filme na tela grande deve permanecer sedutora – e realisticamente precificada”, destaca. Por “realisticamente precificada”, entende- se que pode  ser o caso de as redes cinematográficas estudarem valores mais acessíveis.

Até porque, mesmo na internet, não são tantos assim aqueles dispostos a entregar uma parte do seu suado dinheirinho às empresas de streaming. Na pesquisa realizada pelo Cetic, apenas 10% disseram pagar para ver filmes e séries online. Winston Oyadomari acredita que, em um primeiro momento, o índice até pode parecer baixo, mas está longe de ser insignificante. “Tem muita oferta de conteúdo gratuito na internet. Se pensar que estamos vindo de uma cultura de acesso sem custo, através de downloads ilegais, é um número considerável, que indica que há mercado para cobrar”.

Adesão dos cineastas
No início, a relação entre cinema e streaming foi espinhosa, como também foi quando do surgimento da televisão, do videocassete e da TV a cabo. No ano passado, o Festival de Cannes, um dos mais tradicionais eventos cinematográficos do planeta, excluiu filmes produzidos pela Netflix depois que duas produções selecionadas em 2017 (Okja e Os Meyerowitz) não foram exibidas nos cinemas. Com realizadores consagrados sendo bancados pela empresa – Alfonso Cuarón, os irmãos Coen e Martin Scorsese –, os próprios cineastas estão enxergando novos horizontes na internet.

Cuarón teve seu filme mais recente, Roma, produzido pela Netflix. Exibido em poucas salas de cinema, vem arrebatando vários prêmios e é presença certa entre os principais indicados ao Oscar. Em uma entrevista após a cerimônia do Globo de Ouro – em que faturou os prêmios de diretor e filme estrangeiro –, o mexicano foi questionado por um jornalista sobre o perigo da plataforma “matar” o cinema. A resposta foi direta e reta.

“Minha pergunta para você é: quantos cinemas do mundo você acha que exibiriam um longa mexicano em preto e branco, falado em espanhol e mixteco [dialeto mexicano], que é um drama sem nenhuma estrela de cinema? O quão grande você acha que seria um lançamento convencional no cinema? Acho simplesmente que as discussões entre a Netflix e outras plataformas em geral deveriam acabar. O pessoal das plataformas e dos cinemas deveria se unir e perceber que estão machucando o cinema com suas brigas”, declarou o cineasta.

Antes disso, outro diretor consagrado, o brasileiro Cacá Diegues, do alto de seus mais de 50 anos de carreira, saiu em defesa do SVoD. “A gente está filmando para o cinema, para o DVD, para a televisão e também para o streaming. O streaming é a plataforma do momento. Quantas pessoas estão vendo, como é fácil você ter [acesso ao filme]. No dia em que o streaming for uma indústria, uma economia viável dentro do Brasil, você vai ver um filme atrás do outro”, declarou o cineasta em dezembro, numa entrevista à TV Brasil.

Concorrência contra-ataca
Por enquanto, a Netflix tem nadado de braçada no mercado de streaming, pelo menos no que se refere à quantidade de assinantes. Segundo o último relatório da Global Media Intelligence, divulgado em novembro, a empresa conta com 147,5 milhões de usuários nos Estados Unidos. O segundo colocado, o Amazon Prime Video, conta com uma base de 88,7 milhões de assinantes, seguido pelo Hulu (indisponível no Brasil), com 55 milhões. Essa hegemonia, contudo, está sendo cada vez mais confrontada.

Três grandes empresas de entretenimento – Disney, Warner e Apple – anunciaram para este ano o lançamento de suas próprias plataformas de SVoD (veja mais detalhes a seguir). Além da concorrência direta no mercado, alguns produtos podem migrar de plataforma. É o caso, por exemplo, de Friends, uma das séries de maior sucesso na Netflix, mas produzida pela Warner, e a saga Star Wars, cujos direitos são de propriedade da Disney. “Se uma ou duas empresas puxarem conteúdo, a Netflix ainda pode preencher a lacuna. Mas se o mercado ficar mais agressivo contra a Netflix, aí ficará mais difícil”, disse ao jornal britânico Guardian o analista da Ampere Richard Broughton.

Mesmo no Brasil, já tem gente pronta para disputar espaço com a Netf lix. Lançado em 2015 para disponibilizar online o conteúdo da Rede Globo, o Globoplay deu um passo arrojado no final de 2018. Reforçou seu catálogo com séries internacionais famosas, como The Good Doctor, Killing Eve e House, além de uma produção nacional exclusiva para a plataforma, Ilha de Ferro. Atualmente, são 15 séries estrangeiras disponíveis, mas a promessa é de que elas cheguem na casa de 100 ao final do ano,
além de filmes.