O futuro das transmissões de futebol
Le Monde Diplomatique Brasil - 8/8/2025 - [gif]
Autor: Amanda Trovó, Anderson Santos e Iago Vernek
Assunto: Cobertura de eventos esportivos
Super Mundial de Clubes da FIFA reafirma a força global do streaming e consolida o poder da Globo e da CazéTV no Brasil
O novo Super Mundial de Clubes já ficou para trás, mas ainda chama a atenção por despertar uma série de debates futebolísticos. Além da inesperada competitividade, sobretudo dos times brasileiros, que arrancaram bons resultados contra grandes clubes europeus, a presença do público nos estádios, o engajamento da torcida nas redes e a própria organização do megaevento, inspirado no formato da NBA (a liga estadunidense de basquete), mostraram os caminhos do movimento recente da FIFA, capitaneada por Gianni Infantino, principal mentor da competição.
Para convencer os principais atores do espetáculo, fora dos gramados, o principal foco da instituição foi oferecer prêmios vultuosos aos participantes. E, para isso, era fundamental alcançar altas receitas de direitos de transmissão. Aquém dos valores pretendidos inicialmente, a FIFA fechou um contrato global com a DAZN estipulado em US$ 1 bilhão, o que equivale a cerca de R$ 6 bilhões. O acordo garantiu exclusividade ao serviço de streaming para exibir e sublicenciar globalmente as transmissões das partidas.
No Brasil, Globo e CazéTV compraram os direitos de imagem do torneio, repetindo uma disputa que tem se tornado comum nos últimos anos, como ocorreu nas últimas edições das Copas do Mundo de Seleções masculina, em 2022, e feminina, em 2023, além dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024.
Neste ano, a CazéTV alcançou 17,4 milhões de dispositivos únicos no YouTube durante a primeira rodada da Copa do Mundo de Clubes, ultrapassando a marca da TV fechada, que possui sete milhões de assinantes, segundo dados da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). Enquanto isso, de acordo o Kantar Ibope, a Globo teve um alcance de 114,3 milhões de pessoas diferentes em todo o campeonato, somando TV aberta e fechada (SporTV). O grupo de posse da família Marinho afirma ter superado a audiência da CazéTV em todas as 34 partidas, porém, é importante destacar que o Kantar Ibope realiza uma projeção a partir de 15 praças televisivas do país – argumento este usado pelo grupo de internet para criticar os meios de aferir audiência do mercado publicitário.
Disputas recentes pelos direitos de transmissão no futebol
Em geral, as recentes análises do Observatório das Transmissões de Futebóis apontam para o crescimento e a consolidação da CazéTV no mercado de transmissões brasileiro, ao mesmo tempo em que o grupo Globo assegura seu monopólio na radiodifusão, mantendo a exibição das principais competições de clubes e seleções. Se antes a emissora nadava de braçadas, atualmente se vê diante do avanço de gigantes da comunicação, voltados principalmente às plataformas digitais. A novidade do Super Mundial de Clubes, o que pode indicar uma tendência, foi a expansão da CazéTV, aportada pela LiveMode, para dois novos serviços de streaming: Disney+ e Sky+. As novas estratégias revelam a opção por um modelo híbrido de transmissão.
O grupo Disney é dono dos canais ESPN e do antigo Fox Sports, com grande portfólio de esportes e atuação em nível latino-americano como um atrativo para as suas plataformas de streaming, criadas na década de 2020 – com o Disney+ se fundindo ao Star+ em meados do ano passado. Trata-se, portanto, de uma combinação entre um modelo tradicional, a partir de um conglomerado internacional de comunicação, com um canal produtor de conteúdos de esporte na internet. Assunto para um outro texto, a ESPN também trabalha neste momento em uma parceria, a partir do sublicenciamento de alguns torneios europeus, com o X-Sports, canal da Kalunga que estreia no dia 16 de agosto na TV aberta.
Em relação ao Sky+, como pano de fundo do contrato com a LiveMode, há uma queda da demanda na TV fechada desde 2014, quando esta chegou ao ápice no Brasil. Para isso, considera-se a perda do poder de compra da população, bem como a multiplicação das plataformas e a pulverização dos conteúdos a partir do streaming, que apresenta custo menor, apesar de ainda manter a lógica de exclusão do acesso ao futebol para boa parte da população.
Este não é um processo novo. Ainda no final de 2022, a CazéTV/LiveMode saiu da Twitch, site da Amazon voltado a games, para o YouTube, principal plataforma de compartilhamento de vídeos do mundo. Se parecia um movimento natural, por conta do maior alcance da plataforma da Alphabet, dona do Google, é possível observar uma nova estratégia a partir de 2024, quando a CazéTV passou a ser um canal fast presente na Samsung TV, com programação 24 horas. Durante as Olimpíadas de Paris, o canal já tinha transmissões no Amazon Prime Video, sem a necessidade de pagamento à parte – como ocorre com outras ofertas, como Premiere ou Paramount+. Em paralelo, anunciaram acordo com o Mercado Play, site de vídeos do e-commerce Mercado Livre.
Dinâmicas de cooperação e concorrência na TV e na internet
O passo dado ainda em 2024 pela CazéTV buscava transformar um canal do YouTube em algo mais próximo do modelo tradicional da radiodifusão: programação diária e acesso via controle remoto, na TV, sem necessidade de aplicativo. O aparelho televisivo permanece em mais de 90% dos domicílios no país – com a internet sendo usada em pouco mais de 80%, sobretudo por dispositivos móveis, segundo dados da TIC Domicílios de 2024. A pesquisa, elaborada pelo NIC.br/CGI aponta ainda que de 2014 a 2024, houve um aumento do consumo de conteúdo online na TV (conectada) de 7% para 60%. Por outro lado, em termos regionais, pouco menos da metade da população nordestina (45%) afirmou assistir lives na internet.
As práticas recentes da CazéTV coadunam com os dados sobre a relevância do alcance da TV para conseguir novos e importantes contratos, o que se traduz em maiores receitas na venda de espaços publicitários, ampliando as possibilidades de se sustentar a médio prazo. Ao mesmo tempo, percebemos um cenário diferente da intensa disputa entre Globo e Disney na década de 2000. Com público, formato e plataformas diferentes, Casemiro e a LiveMode parecem compreender que estão diante de um conglomerado superestabelecido no audiovisual esportivo brasileiro.
Ainda no início dos anos 2000, os donos da LiveMode montaram e desenvolveram a partir do TopSports os canais Esporte Interativo, que funcionaram em UHF – até como solução para a dificuldade de entrada nas grandes distribuidoras de TV fechada. O problema é que possuir um canal de televisão próprio, além de envolver concessão pública, custa muito caro – como demonstrou a opção da Warner Bros Discovery em acabar com os canais Esporte Interativo na TV fechada em 2018.
A opinião da torcida entre antigos e novos monopólios
Enquanto Globo, ESPN e TNT Sports estabelecem suas posições na Televisão e no streaming, com custos adicionais em suas transmissões, a Cazé TV “come pelas beiradas” e se fortalece em cima do mote de “democratizar e rejuvenescer” a exibição de futebol. Esse intento de democratizar a transmissão vem com diversas aspas, já que é necessário um aparelho com Internet – seja smartphone ou até mesmo a TV – e algum letramento digital para assistir os eventos por este meio.
A narração em si também é uma questão que divide opiniões. Apesar de contar com figurões famosos em determinados jogos e campeonatos, a maneira com que a transmissão da CazéTV é realizada não parece agradar a todos os públicos. Seu perfil de audiência difere da TV fechada. Apesar de parte da população, sobretudo os jovens, reconhecerem a mudança na hierarquia das transmissões esportivas no Brasil, nem Globo/ESPN, nem CazéTV são unanimidade entre os torcedores.
Sobre o assunto, o canal Peleja produziu um vídeo recente, com participação do Observatório das Transmissões de Futebóis, no qual apresenta as novas dinâmicas deste mercado no Brasil. Aponta-se ali a multiplicidade da oferta de conteúdos esportivos, mas também as muitas barreiras de acesso, que passam pelo pagamento de pacotes de dados de internet, planos adicionais de streaming, habilidades para manuseio de dispositivos eletrônicos e canais digitais, etc.
Chama a atenção na publicação do Peleja os posicionamentos antagônicos expressados por comentários de torcedores. Enquanto um seguidor comenta que “o monopólio da Globo era mais barato pro torcedor. Além de que tantos streamings, tantas plataformas não favoreceram os torcedores mais velhos, que têm muita dificuldade em ver os jogos, pois não sabem onde assistir”, outro seguidor afirma: “CazéTV é o melhor modo de assistir futebol. Youtube funciona em qualquer aparelho e com qualidade impecável”. Em resumo, uma seguidora diz: “além de já pagar mensalidade, tem que adquirir pacote extra. E mesmo assim, muita coisa fica de fora! Minha alegria é quando vejo que (o jogo) vai passar na TV aberta, porque aí sei que vou conseguir assistir sem gambiarra”.
Os altos valores dos pacotes de TV, internet e streaming, bem como a elitização dos estádios e programas de sócios torcedores, têm sido a regra, orquestrada pela FIFA e implementada por federações e cartolas no mundo inteiro. A plataformização e fragmentação dos conteúdos e veículos de mídia, em um cenário de convergência técnico-informacional, apesar de romper de certa forma com antigos oligopólios, têm diminuído ainda mais o acesso das camadas pobres da população aos jogos de futebol. Enquanto isso, a população apaixonada por futebol e outros programas culturais, cercada pela concentração da mídia, por preços exorbitantes e acesso dificultado tem utilizado a pirataria como alternativa para garantir o acesso aos jogos.
As disputas em torno das transmissões esportivas no Brasil
A entrada de canais como a Cazé TV – independente se por meio do YouTube ou de parcerias com canais de streaming ou TV fechadas, como Disney + e Sky – revela os dilemas das transmissões de futebol, bem como as dinâmicas recentes de enfrentamento dos monopólios do Grupo Globo na radiodifusão e das Big Techs na internet. Se o aumento da oferta pelos direitos de imagem pode gerar mais investimentos para alguns clubes, campeonatos menos atrativos economicamente acabam deixados de lado, sendo relegados às TVs públicas, em horários da grade televisiva onde a audiência não é relevante – caso dos campeonatos femininos na grade da SporTV, por exemplo – ou dependendo da exibição por federações ou clubes.
Diante de tantos problemas, é urgente criar algum mecanismo para regulamentar as transmissões esportivas no Brasil na perspectiva do direito à comunicação. Apesar de ser uma ideia que já circula há muito tempo, tem encontrado barreiras financeiras e políticas. Desde a faixa da torcida organizada Gaviões da Fiel “Futebol refém da Globo” até as movimentações em torno do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, diversas organizações estão na luta por democratizar o acesso à informação, contrariando os interesses dos grandes empresários que dominam a mídia e o futebol no Brasil. Sobre o assunto, Ramênia Vieira, coordenadora executiva do Intervozes e atual representante da sociedade civil no Conselho Gestor do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (CGFUST), lamenta o que considera um enterro do PL 2630 no Congresso Nacional, num cenário de pressão externa do governo Trump para barrar a regulamentação das Big Techs.
Junto aos dilemas políticos, na via econômica, encontramos novidades em relação à financeirização do futebol. A título de exemplo, a LiveMode possui, conforme o Lance!, aportes financeiros de dois grandes fundos de investimento: “General Atlantic, fundo global com participações em empresas como Quinto Andar, XP e Gympass” e “XP Asset, braço de private equity da XP Inc”. Além da empresa que administra a CazéTV, a Liga Forte União (LFU) também é controlada por grupos como XP Investimentos, General Atlantic e Life Capital Partners. Essa estrutura de investimento, que se assemelha a uma rede interconectada, evidencia os diversos intermediários que dominam o futebol.
Ainda em relação ao futuro das transmissões esportivas, a estratégia de expansão da CazéTV parece interessante, lembrando a época dos canais de TV paga que adentraram em outras distribuidoras, ao promover uma percepção onipresente, algo que só a TV aberta consegue (sem necessidade de conexão). De certa forma, em analogia, é como se a LiveMode buscasse alcançar a amplitude do sistema de afiliadas da radiodifusão. Por outro lado, problemas recentes com a Twitch, que derrubava o canal de Casimiro através de moderações imprecisas em relação aos direitos de imagem dos torneios esportivos, gerou a decisão, em janeiro de 2025, da retirada da CazéTV desta plataforma. Não depender de apenas uma plataforma pode ser fundamental neste modelo de negócio que se (re)constrói.
De toda forma, a atuação da CazéTV nos faz questionar até que ponto o streaming mobiliza a vida das pessoas em geral. Mais do que produzir respostas, o Observatório das Transmissões de Futebóis se propõe a analisar criticamente as dinâmicas e os movimentos do mercado de exibição dos futebóis no Brasil. Alguma clarividência pode surgir ao observar atentamente as estratégias que levam a mudanças de formatos midiáticos, quase sempre sem transformações estruturais em benefício para o público, o qual segue como um ator escanteado. Aguardemos os próximos capítulos.