Neutralidade como Sedex, analogia infeliz
Circuito De Luca - 04/10/2012 - [ gif ]
Autor: Cristina de Luca
Assunto: Neutralidade da Rede
Nesta terça-feira, 02 de outubro, ao participar do III Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais, em São Paulo, o deputado Alessandro Molon, relator do projeto de lei do Marco Civil da Internet, perguntado sobre a tramitação na Câmara, demonstrou otimismo. Não só crê na possibilidade de um acordo com o governo em torno do princípio de neutralidade de rede, que pressupõe uma definição clara do que venha a ser neutralidade, quanto na aprovação do texto na comissão especial e no plenário da casa ainda este ano.
“É possível construir um caminho de equilíbrio para a redação do artigo nono, que define o princípio de neutralidade. Quero construir uma saída que garanta a aprovação do relatório, que deixe tudo mais claro. Isso não quer dizer que vá agradar a todo mundo. Chega um momento que a gente tem que fazer escolhas”, disse o deputado, lembrando que a retira do princípio de neutralidade do Marco Civil é algo fora de cogitação.
Molon aproveitou a oportunidade para rebater o argumento dos sindicato das operadoras de telefonia de que, se aplicado aos Correios, o princípio de neutralidade impediria a criação de serviços como o Sedex. A analogia foi feita pelo diretor executivo do Sinditelebrasil e membro do Comitê Gestor da Internet, Eduardo Levy, semana passada, no IV Seminário de Telecomunicações na Fiesp.
“O Sedex é não é uma boa comparação. O Sedex põe o foco no remetente. Não estou preocupado com o remetente, estou preocupado com o destinatário, o cara que pega a informação. A ele não será perguntado se quer receber mais rápido ou mais devagar. Isso é definido e pago lá no remetente”, explica Molon.
Não é a primeira vez que as operadoras usam os Correios para explicar sua compreensão de neutralidade. Em outubro do ano passado, durante o
I Fórum da Internet do Brasil, o representante do SindiTelebrasil leu um comunicado da entidade, durante o debate sobre neutralidade, defendendo a flexibilização uma definição de neutralidade da rede no Brasil. Nele, a analogia com o Sedex é explicada em detalhes.
Diz o texto:
Um bom exemplo de modelo de neutralidade de rede é o adotado pelos Correios, que oferecem diversos serviços de entrega de correspondências e encomendas, cobrando diferentes preços conforme a prioridade. Encomendas com hora marcada de entrega, por exemplo, custam mais caro que as cartas simples.
Assim como ocorre com os pacotes de dados na internet, os Correios não oferecem garantia de prazo ou prioridade na entrega de uma carta simples. Essa prática, conhecida como “melhor esforço”, resulta na cobrança de preços menores por um serviço sem programação antecipada. Nesse caso, a empresa fará seu “melhor esforço” para entregar a carta, mas poderá haver atraso se o volume de correspondências estiver muito acima do esperado.
Caso o conceito de neutralidade de rede fosse aplicado aos Correios, proibindo a definição de prioridade para os serviços, os usuários seriam privados da opção de entregas mais rápidas. Ou, então, todos os usuários teriam que pagar mais caro por entregas prioritárias, incluindo aqueles que não desejam pagar mais pela agilidade na entrega.
O problema todo a meu ver, é que a aplicação do conceito de neutralidade, conforme o definido no Marco Civil, não impediria a criação do serviço de entregas rápidas. Nem forçaria todos os usuários dos serviços de internet a pagarem mais caro por entregas prioritárias, mesmo sem fazer uso do serviço. Mas garantiria a todos que pagassem por ele que as entregas rápidas fossem feitas dentro dos critérios técnicos definidos pelo serviço, mesmo que a correspondência fosse internacional e, no seu trajeto, outros serviços postais que não os da EBCT fossem usados. Tampouco inibiria a venda de serviços privados, que garantam a qualidade de serviço dentro da mesma rede, como as conexões dedicadas.
De fato, o termo neutralidade é muito vago e, em alguns aspectos, muitas vezes, não se aplica a todos os pacotes que trafegam em uma rede, como no caso dos pacotes de voz dos serviços de Voz sobre IP, que precisam ser mais rápidos que os de e-mail, por exemplo. Serviços de vídeo em tempo real também precisam ser priorizados. Mas o princípio de neutralidade pode ser aplicado por tipo de pacote trafegado. Pacotes de vídeo em tempo real devem ter o mesmo tratamento em uma rede, independente do emissor. O pacote de vídeo do Terra, do G1, e do Youtube devem ter o mesmo tratamento nas redes por onde trafegam. É o que os técnicos costumam chamar de “isonomia” no tratamento dos pacotes.
Voltando à analogia do Sedex, na prática, o Sedex é o serviço de entrega que não leva em conta o que está sendo enviado em cada pacote, mas a rapidez com que o pacote será enviado, embora, como a carta, o peso do pacote determine o valor pago pelo envio. Hoje, uma conexão de 10 Mbps entrega pacotes de vídeo mais rápido que uma de 1Mbps, dado o peso do pacote e a limitação técnica do envio. E a conexão de 10 Mbps já é mais cara que a de 1Mbps. Continuará sendo assim. O princípio de neutralidade apenas garantirá que a entrega de todos os pacotes de vídeo, independente do emissor, sejam tratados da mesma forma pela conexão de 10 Mbps (Sedex 10) e pela conexão de 1 Mbps (Sedex).
Lato sensu, neutralidade da rede é um termo que define o compromisso, por parte dos provedores de internet e dos operadores de infraestrutura de telecomunicações, de não privilegiar os pacotes de alguns serviços, especialmente os relacionados ao seu próprio negócio, e onerar outros, tornando-os mais lentos. Uma operadora que oferece vídeos pela internet não poderia priorizar seu serviço em detrimento do serviços YouTube do Google, por exemplo.
Trocando em miúdos, a neutralidade de rede garante que o tráfego de dados na Internet seja regulado de forma muito parecida com o tráfego de veículos nas estradas, onde critérios técnicos são usados para “dar preferência” ao tráfego de determinados tipos de veículos, como ambulâncias, carros de bombeiro e viaturas policiais. Ou para garantir a segurança de todos, como no caso do limite de velocidade menor para veículos mais pesados como ônibus e caminhões. Ou ainda para evitar retardos, no caso das faixas livres de pedágio para quem fez o pagamento antecipado da tarifa (uma regra de negócio da concessionária administradora da via).
Neutralidade não impede, por exemplo, a venda de serviços com diferentes velocidades de acesso. Mas impede que o controle do fluxo de dados obedeça a critérios que não sejam técnicos, permitindo que as operadoras cobrem do consumidor de acordo com o tipo de uso que ele fará da rede. Por exemplo, caso o consumidor tenha o hábito de usar redes P2P, pague a mais por isso, para não ter os seus pacotes bloqueados. As operadoras não podem “impedir os consumidores” de acessarem determinados conteúdos, “degradar deliberadamente” o consumo desse conteúdo ou obrigarem os consumidores a usarem aplicativos de sua escolha (hábito muito comum na telefonia móvel, antes dos celulares terem capacidade de acesso internet).
A neutralidade de rede, na Internet, não é para o prejuízo das empresas de telecomunicações, mas para defesa do usuário. A discriminação, sempre que necessária, deverá ser justificada com motivos técnicos.
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Em um artigo escrito no fim de 2011, o amigo Omar Silva, lembra que as teles justificam seu pedido dizendo que sem esta ‘regulamentação’, a Internet brasileira vai entrar em colapso e que se todo mundo resolver usar a banda que lhes é vendida, a Internet brasileira sai do ar… Pergunto: o que a internet brasileira difere da Internet em outros países?
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PS: O irônico da defesa das teles de que a Anatel seja a responsável no Brasil pela regulamentação da neutralidade é que, nos Estados Unidos, em 2010, a justiça desqualificou a Comissão Federal de Comunicações, FCC, equivalente deles à Anatel, ao não reconhecer sua autoridade para “regular as práticas de gerenciamento de rede de um provedor de serviços de internet”. Tudo porque em 2009 a FCC passou a defender de forma mais ativa a neutralidade na rede, quando seu presidente Julius Genachowski propôs duas novas regulamentações para impedir operadoras de bloquearem ou degradarem tráfego na internet. Os regulamentos tinham endereço certo: proibir a Comcast de degradar tráfego P2P.