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11 SET 2023

Não dá para desenvolver IA sem infraestrutura digital


Época Negócios - 8/9/2023 - [gif]


Autor: Dora Kaufman
Assunto: Inteligência Artificial

Em visita ao Brasil, Evgeny Morozov disse que é preciso investir em infraestrutura digital pública, mas ponderação é distante da realidade brasileira e, no caso dos data centers, na contramão do movimento global

Em visita ao Brasil no mês de agosto, Evgeny Morozov, estudioso das implicações políticas e sociais das tecnologias digitais e autor do livro 'Big Tech - A ascensão dos dados e a morte da política' (2018), participou de diversos fóruns e concedeu várias entrevistas, entre elas à jornalista Patrícia Campos Mello. Nessa entrevista, Morozov pondera que não é suficiente regular a inteligência artificial (IA), é preciso igualmente investir em infraestrutura digital pública que viabilize criar soluções de IA generativa e centros de processamento de dados (data centers), em alternativa às soluções ofertadas pelas big techs americanas. A ponderação é justa, mas distante da realidade brasileira e, no caso dos data centers, na contramão do movimento global (constatação factual, não juízo de valor).

No Ranking das Nações Unidas de 2022, que classifica as nações em termos de oferta de serviços digitais públicos, o Brasil ocupa a 12º posição, mas figura na 49ª posição quanto à infraestrutura atrás de Uruguai, Chile e Argentina. Nos Estados e Municípios a oferta de serviços e a infraestrutura são mais precárias: enquanto 75% dos serviços mais demandados ao governo federal são digitais, nos estados essa parcela cai para 45%, função das limitações de recursos humanos, equipamentos e conexão à internet. Em 12 meses, 65% dos usuários de internet de 16 anos ou mais acessaram um serviço digital do governo eletrônico, concentrados nas áreas urbanas (67%), na faixa etária entre 16 a 24 anos (71%) e com renda familiar mensal acima de dez salários mínimos (90%); para quem ganha um salário mínimo, o acesso aos serviços digitais cai para 49%. Essa discrepância deve-se a combinação de acesso de baixa qualidade à internet ou nenhum acesso, e falta de habilidade para lidar com o ambiente virtual (fonte: cetic.br).

Com relação à inteligência artificial, seguindo tendência global, cresce a adoção pelo setor público brasileiro. A 5ª edição da TIC Governo Eletrônico indicou que 45% dos órgãos públicos federais e 22% dos estaduais no Brasil usaram algum tipo de IA para predição e análise de dados, e para automatização de processos (parte desses supostos usos de IA, contudo, são simples automação, ou sistemas estatísticos avançados e não sistemas estatísticos habilitados por IA). O aumento de escala de uso gera pressão para ampliar os limites das arquiteturas tradicionais de TI; o cenário fica ainda mais complicado com o avanço da IA generativa. Uma das principais mudanças em relação à edição anterior do estudo do cetic.br (2021) foi o aumento da contratação de serviços de nuvem, alta que perpassou todos os níveis de governo: 34% dos órgãos públicos federais e 26% dos estaduais contrataram processamento em “nuvem”.

Para construir uma infraestrutura adequada ao desenvolvimento e uso da inteligência artificial são necessários a) recursos de computação de alta capacidade, data centers robustos; b) grande capacidade de armazenamento para escalar à medida que os dados aumentam; c) infraestrutura de rede de alta largura de banda e baixa latência para oferecer suporte às comunicações; e d) segurança cibernética madura para proteger os dados confidenciais e pessoais. Adicionalmente, imprescindível construir uma base de dados em português, com quantidade e qualidade, pré-condição para adaptar os modelos de IA ao contexto local, dispor de profissionais qualificados e de recursos financeiros para pesquisa e desenvolvimento. Os custos envolvidos são proibitivos para os chamados países do Sul Global; como ilustração, para viabilizar um 'ChatGPT' brasileiro são necessários milhões de dólares apenas para treinar seus algoritmos.

Particularmente no quesito data centers, relatório da Deloitte Insights ('Don’t just adopt cloud computing, adapt to it: How the pandemic accelerated a shift in public sector cloud adoption', 21 de janeiro de 2021) confirma a tendência: em vez de construir data centers públicos, os governos mundo afora estão migrando seus processamentos de dados para o serviço em nuvem: 70% dos executivos de governos estaduais e municipais alegaram preferência pela nuvem. Segundo a Deloitte, durante a pandemia da Covid-19, “a nuvem não era apenas uma das muitas prioridades para uma organização de TI dentro de uma agência governamental, mas era o principal recurso para as operações de TI e de negócios manterem os serviços em funcionamento”. O usuário da computação em nuvem, instituição pública ou privada, paga pelo serviço e tem como benefícios a escalabilidade e a flexibilidade que permitem acomodar as mudanças a medida que elas ocorrem, eliminando a despesa com a manutenção e atualizaçao do data center próprio; adicionalmente, acesso às melhores tecnologias de cibersegurança (também chamada de segurança da tecnologia da informação, é a pratica que protege contra ataques maliciosos computadores e servidores, dispositivos móveis, sistemas eletrônicos, redes e dados). Vale lembrar que AWS/Amazon, Azure/Microsoft e Google Cloud detém mais de 60% dos serviços de nuvem global.

Oxford Insights Government AI Readiness Índex 2022, analisou o uso de IA pelos governos de 181 países constatando a falta de compreensão sobre o que é necessário para que a IA seja utilizada no governo de forma eficaz e responsável. O índice contemplou 3 pilares - Governo, Setor de Tecnologia e Dados e Infraestrutura - e 39 indicadores em 10 dimensões. As 10 primeiras posições são EUA, Cingapura, UK, Finlândia, Canada, Coreia do Sul, França, Australia, Japão e Holanda; o Brasil se classificou na posição 39 (o Chile, posição 37, é o único país da America Latina na frente do Brasil).

Em documento do início do ano, o Fórum Econômico Mundial alerta que “As aplicações de IA têm um tremendo potencial para enfrentar os desafios econômicos e sociais em todo o mundo. No entanto, o Sul Global está ficando para trás devido a limitações estruturais. A menos que atuemos juntos para enfrentar os desafios estruturais, a ‘divisão da IA’ continuará a aumentar entre países desenvolvidos e países com recursos limitados, deixando grande parte do mundo para trás”.

*Dora Kaufman é professora do TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros "A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?" e "Desmistificando a inteligência artificial".