Entrevista com Daniel Becker: os malefícios do uso de telas na infância e na adolescência
Portal Drauzio Varella - 20/3/2025 - [gif]
Autor: Maiara Ribeiro
Assunto: Uso de telas na infância e adolescência
O especialista detalha os prejuízos causados pelo uso de telas na infância e comenta sobre a importância dos pais terem controle sobre o que os filhos estão acessando na internet.
O uso de telas na infância tem sido cada vez mais debatido e apontado por especialistas como algo nocivo e prejudicial ao desenvolvimento infantil. Seja em casa, na escola, no restaurante ou no shopping, é comum vermos crianças entretidas nas telas de celulares e tablets, assistindo a desenhos, jogando joguinhos ou mesmo utilizando as redes sociais.
Segundo o levantamento TIC Kids Online Brasil 2024, realizado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 83% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos com acesso à internet têm perfil próprio em plataformas digitais. Entre as crianças de 9 a 10 anos, esse índice é de 60%, e entre as de 11 a 12 anos, o número sobe para 70% – mesmo que a idade mínima para a maioria das redes sociais seja de 13 anos. Na faixa etária entre 15 e 17 anos, a pesquisa aponta que 99% têm perfil próprio.
Portal Drauzio: Quais são os principais malefícios do uso de telas na primeira infância? Por que recomenda-se não disponibilizar telas antes dos 2 anos de idade?
Daniel Becker: Antes de 2 anos – eu diria mesmo antes dos 6, que a gente vai abarcar a primeira infância, que é a época em que o cérebro mais se desenvolve, uma velocidade espantosa de 1 milhão de sinapses por segundo –, se você olhar o conjunto do cérebro, você tem a necessidade, nesse período, de viver experiências que vão ser as experiências formadoras. E essas experiências não podem acontecer em uma tela.
A tela é uma observação passiva de conteúdo geralmente ruim. Então, quando você tira uma criança do mundo real e coloca ela na tela, a atenção dela vai ficar completamente focada ali, e vai, provavelmente, começar um processo de vício que vai fazer com que ela queira cada vez mais, porque elas são especialmente suscetíveis a esses vícios. E mesmo um desenho animado pode ser viciante, existem mecanismos para isso também, eles são hiperestimulantes em geral. Existem até alguns desenhos hoje que a gente chama de [desenhos de] baixo estímulo, que são mais aconselháveis, mas a cada minuto que ela perde de vida no mundo real, ela está perdendo a oportunidade para seu desenvolvimento. Por isso, a grande questão da gente querer conteúdo zero para crianças pequenas.
Portal Drauzio: E a partir dos 2 anos, qual é a recomendação sobre o uso de telas?
Mas hoje em dia está se olhando muito mais para o conteúdo que ela está absorvendo do que para o tempo. Estamos olhando também para as recomendações de não sacrificar o mundo real por causa da tela.
Uma coisa é você jogar um videogame de esporte Fifa durante 20 minutos, ou ver um tutorial de como fazer bijuterias caseiras. Uma outra coisa é você ter 20 minutos de pornografia ou 20 minutos de um vídeo de automutilação para estimular o adolescente a se automutilar. São conteúdos radicalmente opostos, isso faz muita diferença.
Portal Drauzio: No caso de crianças maiores e adolescentes, como deve ser esse uso e quando ele se torna problemático?
Daniel Becker: A criança e o adolescente maior correm mais riscos de se verem coisas totalmente inadequadas. E se não houver supervisão dos pais, é muito grave. Se você deixa uma criança se viciar com muito tempo de tela, muito tempo especialmente de uso de redes sociais, e você não controla esse conteúdo, deixa o algoritmo controlar, o algoritmo vai estar literalmente controlando o seu filho – não controlando, pior, vai estar formando o seu filho.
Uma criança passa uma hora, no máximo, conversando com seus pais ao longo de um dia. Digamos: toma café, aí vai para a escola, fica quatro horas na escola, dessas quatro horas ela ouve o professor durante umas três, volta para casa, fala mais 15 minutos com os pais na hora do jantar, meia horinha. Depois, fica nesse intervalo de tarde ou de noite, quatro, cinco horas ouvindo blogueiros, publicitários e vendedores de produtos falsos, misóginos, racistas, intolerantes, nazistas, coaches. Quem é que está educando essa criança? Pior, quem é que está formando essa criança? Formando os seus valores, as suas crenças, a sua personalidade?
Não são os pais, não são os professores, não são sequer os seus amigos. Quem está formando essa criança é esse bando de gente ruim, porque o algoritmo vai priorizar coisas ruins sempre. Ele não vai mandar conteúdo científico bacana, legal, conhecimento histórico, não é isso que ele vai buscar. Algumas crianças até por interesse próprio buscam isso e acabam educando esse algoritmo, mas o algoritmo espontaneamente vai mandar conteúdo ruim. E esse conteúdo ruim vai formar as nossas crianças.
Vício em celular
Portal Drauzio: Hoje em dia, as crianças estão tendo acesso ao celular cada vez mais cedo, inclusive, em alguns casos, ganhando os seus próprios aparelhos ainda na infância. O que você pensa sobre isso?
Daniel Becker: Talvez a coisa mais lamentável que a gente tem visto é criança sendo viciada em celular. Eu já vi crianças de 3 anos, acredite se quiser, que passam horas e horas no celular vendo TikTok.
Uma criança de classe média ou alta, sempre que ela vai para algum lugar, ela vai estar acompanhada, e não precisa de celular para se comunicar com os pais, porque vai ter o celular da babá, do tio, da avó, do responsável. As crianças mais pobres podem ter outros tipos de situação, certamente. Talvez algumas delas usem o celular por questão de segurança, mas não creio que isso seja a regra. Muita gente está dando o celular para as crianças porque é bom para poder ficar, por um lado, cumprindo, realizando suas tarefas, mas, especialmente também ficando no celular, [porque] também estão viciados.
E isso está acabando, inclusive, com o diálogo nas famílias, está empobrecendo, precarizando o vínculo familiar. Você vê isso nos restaurantes: uma mesa de quatro pessoas, de cinco pessoas, cada uma no seu celular. É algo muito triste, até porque esse vínculo, por um lado, é fundamental para os pais poderem educar seus filhos, sem usar de violência, sem usar de autoritarismo, e também sem serem permissíveis demais. É preciso intimidade com os filhos para isso. E para as crianças, esse vínculo é fundamental para o seu desenvolvimento, o vínculo inicial com os cuidadores primários.
Então, essa coisa de dar o celular é lamentável. Existem estudos claros mostrando que quanto menor a criança, mais graves são os danos e quanto maior o tempo que ela usa durante a infância, isto é, quanto mais cedo ela recebe [o celular], maior o risco de ela ter sintomas de depressão grave na adolescência.
Daniel Becker: Muita gente está usando as recomendações do Jonathan Haidt [psicólogo e autor do livro “A geração ansiosa”, lançado em 2024]. Eu já falava nelas antes do lançamento do livro, de limitar, entregar o mais tarde possível o celular. Tinha um movimento muito pioneiro, muito antes do Haidt, chamado Wait Until Eight (esperar até a oitava série, em tradução livre), que é quando eles têm mais ou menos 14, 15 anos, que é o nosso 9º ano aqui, se eu não me engano. Então, esperar até o fim do ensino fundamental para entregar um celular e entrar nas redes sociais apenas com 15, 16 anos. Quanto mais tarde, melhor.
O cérebro precisa das experiências no mundo real: do exemplo da vida familiar, do diálogo familiar, da interação social, onde ele vai aprender a brigar, se reconciliar, cooperar, colaborar, resolver conflitos com os amigos, fazer seu dever de casa antes de se divertir, e de jogar a bola, ganhar, perder e conseguir superar, e treinar mais para ganhar na próxima; não conseguir tocar o violão que ele queria nas primeiras semanas, mas aos pouquinhos persistindo ele vai começar a aprender e ver que fica cada vez mais fácil. Enfim, tudo isso que a escola, os exemplos de pessoas, a vida real traz para o adolescente é onde ele vai aprender a fazer essa formação do seu córtex pré-frontal e das suas habilidades de adultos. E se a gente tirar isso deles, sabe lá que tipo de adultos vão estar se formando.
Controle sobre os conteúdos
Portal Drauzio: Como os pais podem ter controle sobre o que os filhos estão fazendo e acessando na internet?
É uma loucura. Por um lado, é fazer um acordo familiar, em que haja respeito ao sono, ao esporte, às refeições em família, ao estudo, ao brincar, ao contato com ar livre, à vida cultural; e também sentar junto dele, instalar o aplicativo de controle é indispensável, tem que estudar. O melhor [aplicativo] atualmente é o Qustodio, é um consenso. E poder controlar o tempo de uso de cada aplicativo, o tempo de uso total do celular, a hora de desligar, poder controlar os contatos, as mensagens. Tudo isso você tem que ter acesso.
Não adianta falar em privacidade quando se trata de celular. É claro que você não precisa entrar nas conversas dele com a namorada, ou de cada amigo, mas as mensagens de grupos têm que ser supervisionadas. Tem muito bullying acontecendo em grupos escolares.
E ao mesmo tempo que tem a supervisão com aplicativos, tem que haver também uma presença do responsável junto à criança com o celular, para que esse responsável possa ajudar esse adolescente a desenvolver pensamento crítico diante de todos esses conteúdos horrorosos que ele está recebendo do algoritmo. Ele precisa saber o que é conteúdo publicitário, distinguir publicidade de relatos comuns, aprender a entender o algoritmo, a entender o que é racismo, misoginia, o que é fake news. Tudo isso que eu falei que a escola tem que fazer, também a família tem que participar e também para isso a família tem que estudar um pouquinho. Mas é complicado.
Portal Drauzio: Que estratégias e atividades pais e cuidadores podem propor às crianças e adolescentes para contrapor o uso excessivo de telas?
Daniel Becker: Talvez o mais importante seja essa família entender a importância de mandar essas crianças de volta ao mundo real, promovendo idas à pracinha, aulas de esporte, encontros entre adolescentes, encontros de fim de semana para ir ao parque, à praia, etc.
E claro, em relação às pessoas mais pobres, às periferias, às favelas, a gente tem que ter equipamentos urbanos próximos desses lugares que não sejam degradados, que a gente tem que ter na cidade inteira: praças verdes, arborizadas, com bons brinquedos, quadras de esporte, praças ativadas por eventos esportivos, artísticos, feiras comerciais e culturais, lugares acessíveis, iluminados, seguros. Isso tudo é função das prefeituras.
Portal Drauzio: Além da importância das atividades fora das telas, como brincadeiras, esportes e atividades ao ar livre, também tenho ouvido falar muito sobre a importância do tempo ocioso. Por que o tédio é importante para as crianças?
Daniel Becker: O tédio tem um valor inigualável para a criança, porque quando você nega o celular para uma criança que não tem “o que fazer”, ela vai criar o que fazer. Ela vai criar uma brincadeira, que é a linguagem dela. Ela vai pegar uma colher de pau e vai bater na panela, vai pegar um lençol e esticar na sala, vai fingir que é uma barraca, que é um céu. Ela vai desenhar, vai fazer uma coisa de massinha, um lego, vai brincar com as bonecas e começar a contar mil historinhas para as bonecas. Ela vai fazer uma quebra-cabeça, ela vai pular e correr, chutar uma bola, enfim, milhões de coisas que ela pode e sabe fazer, porque a criança tem esse circuito pronto, ninguém precisa ensinar uma criança a brincar. É só você dizer não e confrontá-la com esse tédio.
Infelizmente, as pessoas esquecem que na sua infância era assim, que elas não tinham tela para assistir e elas inventavam uma brincadeira. Hoje em dia, ficou muito fácil dar uma tela, não dar trabalho para os pais, é rapidinho e assim eles também podem ficar nas suas telas – nós temos que lembrar disso, que os adultos também estão viciados.