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16 JUL 2021

Desigualdade dificulta a inclusão digital de estudantes na pandemia


Observatório do Terceiro Setor - 15/7/2021 - [gif]


Autor: Mariana Lima
Assunto: TIC Domicílios

Falta de acesso a computadores e internet, que afeta os grupos mais pobres, tem levado milhões de estudantes a ficarem sem aulas durante a pandemia. Com o objetivo de mudar este cenário, a ReUrbi – Recicladora Urbana utiliza a logística reversa para apoiar projetos sociais voltados para a inclusão digital

Celular e computador com acesso à internet de qualidade ainda são itens de luxo para uma parcela considerável dos brasileiros. Apesar de 74% da população com dez anos ou mais ter acesso à internet no país, uma a cada quatro ainda vive sem o recurso. Os dados são da pesquisa TIC Domicílios 2019.

Em 2019, os computadores estavam presentes em 95% dos domicílios da classe A, mas em apenas 44% dos domicílios da classe C e 14% dos domicílios das classes D/E. O saldo desigual se tornou evidente durante a pandemia, quando se fez necessário o uso do espaço digital para se estudar e trabalhar de casa.

A pesquisa TIC aponta que o uso da internet de forma exclusiva pelo celular, por exemplo, também é um fator de exclusão, uma vez que está associado a um menor aproveitamento das oportunidades online.

Para Ivan Siqueira, professor na Escola de Comunicações e Artes da USP e membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, é preciso definir o que é estar conectado para que a gravidade do cenário seja compreendida.

“Acessar apenas redes sociais e alguns aplicativos, definitivamente, não pode ser concebido como conectividade para uso educacional. Inclusão digital não se dá apenas pela posse de smartphone e conexão, ainda que isso seja requisito basilar. Inclusão digital implica poder fazer uso das potencialidades do mundo digital, ter acesso a informações antes inacessíveis e, sobretudo, poder tirar proveito para o seu desenvolvimento como ser humano”, argumenta.

De acordo com um levantamento do Unicef, divulgado em novembro de 2020, quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentavam a escola, seja de forma remota ou presencial, no Brasil. O levantamento ainda revela que 3,7 milhões de estudantes não tiveram acesso a atividades escolares ou não conseguiram estudar em casa. Ao todo, 5,1 milhões não tiveram acesso à educação no último ano.

Siqueira revela que o acesso à infraestrutura adequada depende do atrativo econômico. É por isso que periferias, comunidade indígenas e quilombolas e as regiões rurais enfrentam os maiores obstáculos para ter conexão.

“Há poucas políticas para essa gente por conta da violência histórica que constantemente arquiteta a sua invisibilidade social. É preciso muito esforço e cinismo para acreditar que uma articulação tão longeva e tão bem elaborada seja obra do acaso. Sem conhecimentos básicos de como e por que os artefatos digitais definem a nossa era, ficará cada vez mais distante qualquer sonho de cidadania, de democracia e de pleno desenvolvimento, como prometem a nossa Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, pondera.

A desigualdade promovida pela exclusão digital, contudo, não se limita à educação. Segundo um estudo do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira, da Fundação Getulio Vargas (FGV/Cemif), a baixa inclusão digital dificultou o acesso ao auxílio emergencial.

No total, 20% dos entrevistados das classes D/E não conseguiram o benefício pela falta do celular, enquanto 22% dos mais pobres não conseguiram devido às limitações da internet e 28% por não conseguirem usar o aplicativo da Caixa. Em entrevista ao TAB, do UOL, a pesquisadora Rebeca de Moraes informou que o brasileiro gasta em média R$ 115 por mês para ter acesso à internet, o que corresponde a aproximadamente 10% do salário mínimo atual (R$ 1.100).

Para Siqueira, o Brasil tem acesso às informações necessárias que poderiam ter sido utilizadas para minimizar o agravamento da desigualdade durante a pandemia, mas não o fez de forma adequada.

“Problemas de infraestrutura, falta de conexão com banda larga, falta de computadores, falta de formação continuada para docentes. Nada disso nos era desconhecido antes da pandemia. Necessitamos, e pra ontem, de infraestrutura adequada, velocidade de conexão compatível com as tarefas escolares, acesso a equipamentos e, sobretudo, formação para que docentes possam mediar o desenvolvimento dos estudantes”.

Iniciativas que minimizam os impactos

Desde 2012, a ReUrbi – Recicladora Urbana utiliza a logística reversa no descarte de equipamentos eletrônicos de TI e Telecomunicações, de acordo com um modelo de economia circular, para promover a inclusão digital através de projetos sociais, clientes e parceiros.

Desta forma, as empresas que descartam com a ReUrbi, além das certificações adequadas, podem transformar o valor gerado pelos resíduos em equipamentos da Remakker, linha de computadores seminovos desenvolvida pela recicladora, que são doados para projetos sociais que atuam em prol da inclusão digital.

Já são mais de 80 projetos contemplados pela política de comodato – eles só precisam devolver os equipamentos quando estiverem em desuso para manter o ciclo – e mais de 1,6 mil equipamentos doados.

Com uma frente voltada para o ambiental e outra para o comercial, em 2021, a ReUrbi formalizou sua atuação social com a criação do Instituto ReUrbi, visando fortalecer as relações com os projetos sociais.

“O Instituto, como uma entidade sem fins lucrativos, não tem a preocupação com resultados econômicos. Essa foi a grande razão para ser constituído, dando suporte a toda essa ação social que é a vocação da empresa. Os investimentos alocados no Instituto e a aplicação de seus recursos são focados exclusivamente em projetos sociais sem qualquer preocupação com rentabilidade e aspectos econômico-financeiros a não ser a própria manutenção de sua estrutura e objetivos”, explica Luiz Carlos Bertoncello, diretor executivo da ReUrbi.

Bertoncello reforça que o trabalho conjunto entre empresas privadas e o Terceiro Setor se mostra essencial em meio à pandemia, para mitigar as consequências da desigualdade.

“Esperar por políticas públicas voltadas ao combate da exclusão seria ilusório neste momento, uma vez que às políticas públicas focadas nas necessidades básicas das comunidades não são supridas de forma desejada em um cenário normal. Então, a sociedade civil e as empresas se mostram essenciais para desenvolver trabalhos de combate à exclusão digital”, pondera.

Organizações que fazem a diferença

É através desta parceria que a organização sem fins lucrativos ARCO – Associação Beneficente vem conseguindo garantir os direitos básicos de crianças, adolescentes, idosos e famílias vulneráveis na periferia de São Paulo.

Atuando há 30 anos na região do Jardim Ângela, na periferia da Zona Sul da capital paulista, a ARCO oferece atividades culturais, educacionais e de profissionalização, além de realizar projetos em parceria com a iniciativa privada e convênios públicos que visam fortalecer a vivência comunitária.

Madalena Sodré, de 46 anos, atua como coordenadora da ARCO e sabe que a região enfrenta diversos problemas estruturais, como a falta de iluminação nas ruas, o transporte público escasso e a precariedade de escolas e unidades básicas de saúde (UBS) próximas.

“A ARCO consegue jogar luz sobre esses problemas e fazer ações para que essa comunidade não fique de vez esquecida. Então, num lugar como esse, trazer a possibilidade de profissionalização, de fortalecer, de educar, é muito importante, na verdade, é necessário. Ver esses jovens estudando e trabalhando nos mostra que eles só precisam de uma única oportunidade para sair do ciclo da vulnerabilidade”, revela.

Com a doação dos equipamentos da linha Remakker, da ReUrbi, a ARCO pôde fortalecer seu trabalho. Os equipamentos permitiram a ampliação das salas de informática e o acesso aos equipamentos para todos os professores e equipe da organização. No total, a ARCO atende cerca de 460 crianças e adolescentes, entre 6 e 17 anos, e 200 jovens e adultos de 18 a 60 anos.

“Essa parceria só veio trazer força para as nossas ações. Na pandemia, ter esses equipamentos de qualidade fez toda a diferença. O acesso à tecnologia é bem escasso aqui no fundão da periferia. Muitos estudantes nos buscam para conseguir acompanhar as aulas online do ensino regular. Então, a gente reserva um horário e um equipamento aqui na ARCO para que eles possam acompanhar as aulas”, conta Madalena.

A questão do acesso ao ensino remoto vem preocupando a ARCO, que chegou a realizar uma pesquisa com seus atendidos em junho deste ano. Por meio de um formulário, que recebeu 375 respostas, a organização descobriu que 74,4% não estavam indo para a escola; 69,1% iam apenas para retirar as lições impressas; 41,9% não estavam assistindo às aulas online; enquanto os que assistiam o faziam pelo celular do responsável (31,2%).

“Ficamos chocados com o número de famílias sem acesso à internet. É um problema que se agrava a cada dia. O Estado precisa entender que não adianta apenas disponibilizar a atividade online para esse jovem. É necessário pensar em como ele vai estudar, com que internet e com qual aparelho. Na maioria das vezes, o responsável vai trabalhar cedo e leva o único celular da família. E quando chega à noite, as crianças disputam esse celular para poder fazer a lição. As ações de ensino híbrido precisam andar junto com a realidade das famílias periféricas”, argumenta.

No último ano, com a mobilização de parceiros e doadores, a organização conseguiu arrecadar celulares e tablets usados para os estudantes atendidos. A campanha conseguiu contemplar 67 crianças e adolescentes.

Além dos problemas em relação ao acesso às aulas remotas, a ARCO viu crescer o número de famílias que necessitam de doações. “A gente atende 475 famílias que têm filhos matriculados aqui. Com o efeito da pandemia, ficamos mais abertos para a comunidade. Hoje, temos uma lista com 1.200 famílias cadastradas para receber algum tipo de doação ou ajuda”, conta.

Atualmente, a organização vem recebendo crianças e jovens presencialmente no sistema de rodízio, com 30% da capacidade habitual do espaço. O suporte às famílias é realizado também de forma presencial, mas com agendamento.

Muitas famílias não tinham como falar com a gente de forma remota. Brincamos que ressuscitamos a carta porque, assim, tem um vai e vem de envelopes danado. Então muita coisa vai por escrita até as famílias. A gente entrega ou eles vêm retirar aqui. Nossa maior atuação no momento é essa. Estamos numa luta diária para que mais pessoas tenham alguma forma de conexão em casa”.

Este conteúdo foi produzido por meio de uma parceria entre o Observatório do Terceiro Setor e a ReUrbi – Recicladora Urbana.