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02 SET 2025

Disputa por poder na Internet do Brasil contamina até lei para criança online


UOL Tilt - 1/9/2025 - [gif]


Autor: Helton Simões Gomes
Assunto: Proteção de crianças e adolescentes na Internet

Em reposta à indignação da sociedade com o tratamento dado pelas redes sociais a crianças e adolescentes, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2628. Após baixar a poeira da votação, que selou a obrigação de plataformas digitais, como Instagram (Meta), TikTok e YouTube (Google), adotarem camadas extra de proteção a menores de idade, outra jogada emergiu.

No apagar das luzes, a Anatel (Agência Nacional das Telecomunicações) conseguiu uma emenda ao texto para exercer poderes adicionais sobre a internet no Brasil, como o de intermediar bloqueios judiciais de nomes de domínio.

O movimento provocou uma onda de repúdio entre entidades ligadas à administração da rede no país, que veem um avanço sobre as competências do CGI.br (Comitê Gestor da Internet). "Contribui com o propósito deles de serem a polícia da internet", comenta uma pessoa ligada a essas organizações.

Ao Radar Big Tech, Carlos Manuel Baigorri, presidente da Anatel, admitiu o empenho pessoal junto aos parlamentares para alterar o texto da lei e afirmou que o esforço não vai parar por aí —a agência disputa nos bastidores para assumir os postos de xerife para o ECA Digital, ainda em aberto, e para o Marco Legal da IA, destinado à ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), indica a tramitação anterior no Senado e a atual discussão na Câmara.

"Isso é uma agenda institucional da agência prevista no nosso planejamento estratégico, dentro do que a gente chama de reposicionamento [da Anatel]." - Carlos Manuel Baigorri, presidente da Anatel

O que rolou?

Durante a votação no plenário, já na noite de quarta (20), os parlamentares apresentaram 17 emendas ao ECA Digital. Só duas foram acolhidas pelo relator, Jadyel Alencar (Republicanos-PI):

Uma delas partiu do deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), presidente da Comissão de Comunicação da Casa. A modificação inseriu no texto medidas para sancionar temporariamente os serviços que descumprirem alguma das camadas de proteção às crianças. Isso inclui...

... "Ordem de bloqueio dirigida às prestadoras de serviços de telecomunicações que proveem conexão à internet, às entidades gestoras de PTTs (pontos de troca de tráfego) de internet, aos prestadores de serviços de resolução de nomes de domínio e aos demais agentes que viabilizam a conexão entre usuários e servidores de conteúdo na internet". E...

... Ficou a cargo da Anatel ser o entreposto com a Justiça. Daí surgiram dois desconfortos, já que...

... 1) Do ponto de vista técnico, bloqueios de conteúdo não exigem o acionamento de PTTs. Mal comparando, eles são como entroncamentos de rodovias, em que um dado trafegando por uma estrada da internet passa a seguir por outra. E...

... 2) A gestão dos nomes e domínios no Brasil é feita pelo Registro.br, um departamento do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), que implementa as decisões do CGI.br. Quando há alguma ordem judicial, a Justiça já aciona diretamente essas entidades. Para interlocutores, a chegada de um intermediário esvazia a autonomia dos órgãos, inclusive a de propor soluções técnicas mais viáveis para cada situação. Procurado pelo Radar Big Tech, o CGI informou que não comentaria por ainda não ter deliberado sobre a questão. Mas...

... Depois do aval da Câmara, o texto foi aprovado pelo Senado e agora aguarda sanção presidencial. Se isso ocorrer, passa a valer dentro de um ano.

Por que é importante?

No Senado, interlocutores das entidades de internet argumentaram que o trecho referente à Anatel apresentava uma "inconstitucionalidade por vício de iniciativa". "Um projeto de lei ordinário não pode ampliar competências de agências reguladoras", diz uma pessoa que participou da negociação.

A internet não é uma coisa só. Depende da infraestrutura das empresas de telecomunicação, área de atuação da Anatel; das redes e dos vários protocolos de troca de pacotes de dados; e dos diversos serviços conectados, que vão das redes sociais aos correios eletrônicos.

A gestão de redes e protocolos é feita de forma multisetorial, com o CGI sendo o interlocutor nacional de vários fóruns internacionais. Já as aplicações digitais não estão submetidas, até agora, a agência ou entidade alguma. No entanto, organizações da sociedade civil ligadas à internet veem que a Anatel se movimenta para expandir seus poderes e abarcar essas duas estruturas hoje fora de sua alçada.

"Conferir à Anatel o poder para determinar técnicas de bloqueio nas camadas superiores da rede, distintas da camada de infraestrutura de telecomunicações, contraria o arranjo institucional que permitiu o desenvolvimento da Internet no País e concentra na Anatel competências de forma incompatível com o arranjo multissetorial que caracteriza o modelo de governança da Internet no Brasil." - Internet Society no Brasil

O ECA Digital não é o primeiro capítulo dessa novela. A própria Anatel extinguiu em abril a Norma 4, uma regra que diferenciava a conexão à internet, fora do seu alcance, dos serviços de comunicação multimídia, supervisionados pela agência e que compreendem a banda larga fixa. Ao tornar uma só as duas coisas, a Anatel, a título de reorganização tributária, deu uma mordida sobre parte da gestão da internet. A agência encampa ainda ao menos dois projetos de lei, um do deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) e outro da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que mexem nas cadeiras da governança da internet no Brasil para colocar a agência acima das demais organizações.

Não é bem assim, mas tá quase lá

Em entrevista a Radar Big Tech, Carlos Manuel Baigorri rebate a acusação de que a Anatel esteja invadindo as competências do CGI.br, seja na questão dos pontos de troca de tráfego ("Não há exclusividade, monopólio ou prerrogativa do NIC.br em ter PPTs no Brasil. Qualquer um pode fazer"), seja sobre nomes e domínios ("Há DNS (Sistema de Nomes e Domínios, na sigla em inglês) público do Google, da Cisco, da Cloudfare (?) O Registro.br é só um cartório que cobra R$ 40 para cada domínio no Brasil a título de não sei lá o que para você ser dono daquele domínio").

Para ele, somente a Anatel pode exercer o "poder de polícia" na internet devido à ascendência regulatória sobre as empresas de telecomunicação, que são donas da infraestrutura da qual os serviços conectados dependem para operar. E, para Baigorri, essa visão vale para toda discussão regulatória —da inteligência artificial à regulação das redes sociais, passando por bets e conteúdo pirata online— que envolva qualquer recôndito do ambiente digital.