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25 AGO 2025

Adultizar é acelerar as infâncias - e a troco de quê fazemos isso?


UOL - 24/8/2025 - [gif]


Autor: Michelle Prazeres
Assunto: Proteção de crianças e adolescentes na Internet

O influenciador Felca viralizou com um vídeo de denúncia sobre casos de pedofilia e sexualização de crianças nas redes sociais e pautou um debate importantíssimo sobre a adultização.

Mirando o fato desde o ponto de vista da aceleração social do tempo e das reverberações nos diversos campos da vida, a adultização das crianças é um fenômeno de aceleração da infância, tendo em vista que promove, entre as crianças, modos de falar, interagir e se apresentar que antecipam experiências que deveriam ser vividas de forma gradual e segura.

Desacelerar não é ser devagar, mas se perguntar quando a velocidade faz sentido e quando não faz, mas estamos correndo, porque a pressa virou o automático. E para sair do automático, precisamos mobilizar atenção e consciência. O famoso "parar para pensar".

Neste caso, se pararmos para pensar, faz sentido acelerar a infância e adultizar as crianças? A quem interessa que, como sociedade, desejemos que nossas crianças sejam adultas mais rápido?

Minha intenção aqui é chamar atenção para o que estamos fazendo e para as consequências de estarmos acelerando as infâncias e deixando de cumprir nosso papel como adultos, que é de proteger as nossas crianças e garantir ambientes saudáveis para que elas cresçam e se desenvolvam.

A repercussão do vídeo de Felca da denúncia foi tamanha, que pressionou o Congresso a colocar o tema em pauta com mais urgência e aprovar o Projeto de Lei (PL) 2628/2022, que estabelece regras para proteção e prevenção de crimes contra crianças e adolescentes em ambientes digitais.

Eu fico observando os debates que acontecem nas redes e pensando como normalizamos o absurdo. E quando normalizamos o absurdo, o óbvio precisa ser reafirmado: criança precisa ser criança. Infância é tempo de brincar. E existe todo um sistema de proteção para garantirmos os direitos das crianças. Mas este sistema não necessariamente prevê a normatização de muito do que acontece nas plataformas digitais.

Estas plataformas não são apenas ambientes de circulação de conteúdo nocivo que —sem regulação nenhuma— chegam a crianças que não possuem ainda condição de manejá-los. As plataformas não são "apenas" lugares onde estes conteúdos estão dispostos; elas são mecanismos sofisticados de sugestão; ambientes controlados por empresas que estão instalando em nós (e também nas crianças precocemente expostas a eles) modos de ser, estar e viver; sugerindo comportamentos e promovendo valores, crenças e atitudes; transformando as próprias crianças em produtos.

De acordo com reportagem da Agência Brasil, 93% da população brasileira de 9 a 17 anos é usuária de internet, o que representa 24,5 milhões de pessoas segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). A pesquisa TIC Kid Online mostra que 83% desses adolescentes têm perfil próprio nas redes sociais. Além disso, 30% relataram que tiveram contato com alguém online que não conheciam pessoalmente.

São inúmeros os estudos que comprovam que as crianças e adolescentes expostos aos conteúdos e aos modos de percepção e comportamentos promovidos nas redes sofrem consequências psíquicas, emocionais, afetivas e sociais com as quais não sabemos muito bem lidar, porque nos falta inclusive repertório, como geração de adultos que está também imersa nesses ambientes.

Poderia aqui explorar inúmeras vertentes deste debate tão urgente, necessário e que não deveria ser pontual, mas perene.

Mas deixo algumas questões que dizem respeito à violação do direito ao tempo e ao bem viver na infância.

Estamos acelerando as nossas crianças, promovendo precocemente a exposição a realidades do mundo adulto a troco de quê? A quem interessa que nossas crianças sejam adultos precocemente? A quem interessa que elas consumam estes conteúdos e sejam expostas a estas lógicas e dinâmicas do mundo adulto? De que projeto esta antecipação está a serviço? Vamos nos fazer estas perguntas, para justamente voltarmos a nos espantar com o que normalizamos, mas é absurdo?

Vale lembrar que no Brasil temos um debate avançadíssimo sobre regulação das plataformas e letramento crítico da mídia, promovido há anos por seriíssimas organizações da sociedade civil, como o Intervozes, o Educamídia, o Diracom e a Coalizão Diretos na Rede, para ficar apenas em alguns exemplos.

O Instituto Alana desenvolve um trabalho lindo de proteção aos direitos das crianças e adolescentes e de incentivo à infância livre de consumo e o direito à natureza. Em depoimento ao UOL, Renato Godoy, gerente de Relações Governamentais do Instituto, afirmou que "não existe uma legislação hoje para tratar da responsabilização de quem permite a disseminação, a monetização e a lucratividade de determinado tipo de conteúdo".

O projeto Infância sem excesso também busca incentivar uma infância livre de consumismo. No âmbito do slow, existe o movimento slow kids, que busca afirmar o direto à infância a partir da perspectiva do tempo.

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que crianças menores de 2 anos não tenham contato com telas, e que crianças entre 2 e 5 anos limitem o tempo de tela a no máximo 1 hora por dia, sempre com supervisão. Para crianças de 6 a 10 anos, a recomendação é de até 2 horas diárias, e para adolescentes de 11 a 18 anos, o limite é de 2 a 3 horas, sempre com supervisão e evitando o uso excessivo antes de dormir.

E este não é um debate brasileiro. Em "A Geração Ansiosa", Jonathan Haidt, psicólogo social estadunidense mostra como o uso excessivo de telas e a hiperconectividade na infância e adolescência estão contribuindo para o aumento de transtornos de ansiedade e outros problemas de saúde mental. A série "Adolescência" explora elementos desta realidade, ao discutir a misoginia e a relação com as plataformas digitais.

A sexualização é a ponta de um gigantesco iceberg para o qual devemos olhar de forma permanente e profunda: estamos acelerando as infâncias, adultizando as crianças, roubando-lhes tempo e as expondo a ambientes e questões para os quais elas não estão preparadas.

Se as plataformas digitais desempenham um papel central neste projeto, devem ser objeto de atenção, monitoramento e políticas de proteção.