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15 DEZ 2016

Quais são as ameaças à internet brasileira, segundo 39 entidades internacionais


Nexo - 14/12/2016 - [gif]


Autor: André Cabette Fábio
Assunto: IGF 2016

Para signatárias do ‘Manifesto de Guadalajara pelos Direitos e Governança da Internet no Brasil’, rede corre o risco de se tornar menos democrática no país

“A Internet aberta como a conhecemos está agora em risco”. Essa é a mensagem de 39 entidades da sociedade civil de diversos países do globo sobre a internet brasileira.

Elas se reuniram no início de dezembro na cidade de Guadalajara, no México, como parte do 11º Fórum de Governança da Internet e são signatárias do “Manifesto de Guadalajara pelos Direitos e Governança da Internet no Brasil”.

O documento é o fruto de um encontro entre entidades de 83 países, com o objetivo de trocar experiências sobre formas de ampliar o acesso à internet e contribuir para metas de desenvolvimento sustentável estabelecidas pela ONU.

Entre os signatários do manifesto estão a ONG internacional Artigo 19, que promove a liberdade de expressão. Para o grupo, forças políticas conservadoras estão se articulando para revogar o que as entidades consideram avanços garantidos pelo MCI (Marco Civil da Internet) e tornar a rede brasileira menos democrática.

O Nexo organizou as principais preocupações apresentadas na carta.

Veto ao modelo de concessões públicas de telecomunicações

“O Congresso está prestes a aprovar uma lei que representará um sério revés nas políticas de telecomunicações e resultará na perda da soberania do Estado sobre as redes de telecomunicações, comprometendo o propósito estabelecido pelo MCI de acesso universal e inclusão digital”

Coalização Direitos na Rede

Criada em 1997, a Lei Geral de Comunicações estabelece que todos os serviços de telecomunicações são de exploração do Estado. Mas o governo delega sua exploração para empresas privadas através de dois regimes: público e privado.

A telefonia fixa se enquadra no regime público. As empresas que a exploram fazem isso a partir do modelo de concessões temporárias, que prevê uma série de contrapartidas.

A telefonia móvel, banda larga fixa e TV paga, são de regime privado. Ele é explorado por meio de autorizações, que são regidas por regras similares às de qualquer empresa.

O regime público é aplicado para serviços que, por serem considerados essenciais, precisam atingir um padrão de qualidade e serem estendidos a toda a população.

Na época da criação da lei, a telefonia fixa era um serviço de alcance único. O princípio é de que, se fosse regido pelas leis de mercado habituais, poderia se tornar disponível apenas aos mais ricos e com uma qualidade e constância inferior à desejada.

As empresas que exploraram desde 1997 as concessões de telefonia tiveram que, em troca, realizar uma série de investimentos que viabilizaram a expansão da rede sem interrupções e com tarifas acessíveis.

Já o regime privado segue as normas constitucionais que regem atividades econômicas em geral. No momento em que a Lei Geral de Comunicações foi promulgada, a internet de banda larga era um serviço novo, relativamente restrito, e não era visto como essencial.

Atores da sociedade civil como a Campanha Banda Larga defendem, no entanto, que o caráter da internet mudou. Eles pleiteiam que a banda larga seja transferida para o rol de serviços públicos, o que em tese garantiria a ampliação da rede sob diretrizes estabelecidas pelo governo e a preços acessíveis.

Está em vias de aprovação no país, no entanto, o projeto de lei 3.453 de 2015, que prevê a retirada da telefonia fixa do rol de serviços considerados públicos, o que é criticado pelo “Manifesto de Guadalajara”.

O projeto já foi aprovado na Câmara e no Senado, onde aguarda recursos dos parlamentares para que possa ser levado à sanção presidencial.

Bens reversíveis

A lei em tramitação no Congresso também modifica outro dispositivo da Lei Geral de Comunicações referente ao controle da infraestrutura que viabiliza as telecomunicações.

Pela lei de 1997, os investimentos realizados pelas concessionárias de telefonia fixa em infraestrutura - como cabos e obras para que eles cheguem ao país inteiro - seriam “reversíveis”. Ou seja, ficariam sob controle do Estado ao fim do período da concessão.

O objetivo com isso é garantir que caso outra empresa assuma o serviço ao fim de um contrato de concessão, ela consiga operar o serviço sem precisar criar uma nova infraestrutura do zero - algo que seria extremamente custoso e representaria um retrocesso na prestação do serviço.

Mas a mesma infraestrutura utilizada para os serviços de telefonia fixa, que é uma concessão pública, serve também para a banda larga, que é uma autorização privada.

Uma das propostas do projeto de lei 3.453/2015 é fazer com que parte dos bens reversíveis possam permanecer nas mãos das empresas exploradoras das concessões, mesmo ao término dos contratos.

Por exemplo: se um investimento de R$ 100 milhões é compartilhado para prover internet e telefonia fixa, seria realizado um cálculo determinando quantos por cento da infraestrutura é utilizada para cada tipo de serviço.

Se 90% da infraestrutura fosse usada para a internet, que é uma concessão privada, então apenas R$ 10 milhões seriam relativos à telefonia fixa, que é a concessão pública na qual existe a figura dos bens reversíveis. Ou seja, o valor que poderia voltar às mãos do governo seria de apenas R$ 10 milhões.

O montante é, no entanto, bem maior. Segundo dados fornecidos em 2012 pelas concessionárias de telecomunicações via Lei de Acesso à Informação, o investimento em bens reversíveis eram de R$ 108 bilhões que, após anos de depreciação, chegavam a R$ 17 bilhões em 2011.

Franquias de internet

“O governo, em conjunto com a Agência Nacional de Telecomunicações, tem sido permissivo em relação a práticas comerciais discriminatórias, como permitir novos planos com limites de dados”, diz o manifesto de Guadalajara.

No início do ano, as maiores provedoras de internet do país começaram a adotar para a internet fixa o sistema de franquias, ou seja, um limite mensal de consumo de dados.

Ele previa a redução na velocidade ou cortes na internet de quem consumisse mais do que o plano contratado.

A medida gerou críticas da sociedade civil. Entidades como o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) a encararam como discriminatória.

O argumento é de que ela, na prática, criaria duas classes de internet: uma para quem pudesse pagar por pacotes maiores e outra para o resto da população.

As empresas argumentaram que a mudança era necessária para bancar a ampliação da infraestrutura de banda larga no país.

Mas entidades de defesa do consumidor questionam essa informação, dizendo que não há dados técnicos que a corroborem.

Em meio à polêmica, o presidente da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), João Rezende, afirmou em abril deste ano que “a era da banda larga ilimitada acabou”. A Ordem dos Advogados do Brasil acusou a agência de defender o interesse das operadoras de telecomunicações.

Depois de forte reação da sociedade civil, a Anatel suspendeu o sistema por tempo indeterminado - até a questão ser julgada pela própria entidade, o que não tem data para acontecer.

Atualmente, a Anatel está realizando uma consulta pública on-line para embasar seu posicionamento definitivo sobre o tema.

Zero rating

A carta também critica “acordos anticoncorrenciais entre grandes provedores de acesso e grandes plataformas de serviços on-line”.

O documento se refere à prática do chamado “zero rating”.

Essa medida pode ser aplicada exclusivamente nos casos em que as franquias de dados já existem, como é o caso da internet por telefonia móvel no Brasil.

Como no modelo de franquias a internet é “gasta” conforme é usada até o ponto em que a velocidade é reduzida ou o acesso é completamente cortado, as empresas ganham o poder de oferecer a outras companhias o privilégio de não “consumirem” dados dos clientes.

Por exemplo: Claro e TIM têm planos populares que não contabilizam a internet gasta com o Whatsapp, o que leva os usuários a escolherem este programa e não alternativas, como o Telegram.

O mesmo vale para serviços de vendas. Claro, Oi, TIM e Vivo fecharam acordo com o site de comércio eletrônico Netshoes. Se o concorrente quiser oferecer o mesmo benefício, tem que negociar com as operadoras.

Para gastar menos, o usuário acaba limitado a serviços específicos. A crítica é que isso acaba prendendo usuários aos serviços de grandes empresas de tecnologia, que têm cacife para negociar com as operadoras. As novatas têm uma dificuldade maior para concorrer.

Mudança na composição do Comitê Gestor da Internet

“Agora, em 2016, assistimos a ações políticas do Poder Executivo que ameaçam a governança multissetorial da Internet, mais especificamente o CGI.br. Os representantes do governo declararam abertamente que pretendem rever a representatividade e participação da sociedade civil na comissão.”

Criado em 1995, o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil) tem entre suas atribuições regular atividades na internet, estabelecer diretrizes para o desenvolvimento da rede e registrar todos os sites brasileiros.

Ele é formado por 21 membros. Nove deles são indicados pelo governo, e o resto das vagas é dividido igualmente por associações que representam membros da sociedade civil, comunidade científica e representantes de empresas ligadas à internet.

As teles têm direito a apenas uma cadeira, e pleiteiam há tempos uma mudança na composição do CGI. O argumento é que investiram na construção e manutenção da rede, e os representantes da sociedade votam em bloco, sem considerar o impacto que suas decisões terão sobre as empresas.

Segundo reportagem publicada em julho de 2016 pelo jornal “Folha de S.Paulo”, empresas de telefonia, estúdios de cinema e outros produtores de conteúdo estão pressionando o governo para que mude a composição da entidade.

Em entrevista concedida em julho ao jornal paulista, Flávia Lefrève, que representa entidades de defesa dos consumidores no conselho, afirmou que “o que existe é uma tentativa das teles de enviesar [a entidade] pelo lado econômico”.

Remoção do Whatsapp

“Vimos também decisões judiciais que determinam a remoção de aplicativos como o WhatsApp, quando a empresa é incapaz de fornecer dados e conteúdo sobre as pessoas investigadas pela polícia ou autoridades de investigação devido ao uso de criptografia.”

Entre dezembro de 2015 e julho de 2016, o serviço de troca de mensagens WhatsApp foi bloqueado quatro vezes por decisões judiciais no Brasil.

O roteiro é o mesmo: um magistrado pede acesso a mensagens particulares de suspeitos de algum crime. O WhatsApp se recusa a ceder o conteúdo e acaba bloqueado por desrespeito à decisão judicial. O bloqueio causa impacto nos 100 milhões de usuários do serviço.

Isso aconteceu em dezembro de 2015 e em maio e julho de 2016. Nos diferentes episódios, o tempo de suspensão do serviço variou de algumas horas a até um dia.

Em março, o vice-presidente de operações do Facebook na América Latina, Diego Dzodan, foi preso pelo fato de a empresa descumprir as sucessivas ordens judiciais sobre quebra do sigilo de mensagens. O Facebook é dono do WhatsApp.

Uma das principais críticas a esse tipo de medida é o fato de que ela afeta muito mais gente do que o público investigado.

Em entrevista ao Nexo em julho de 2016, Carlos Affonso de Souza, membro do Instituto de Tecnologia e Sociedade, afirmou que “bloquear a aplicação para todos os seus usuários por conta de ilícitos que podem ter sido cometidos por um pequeno número de pessoas falha em superar o teste da proporcionalidade”.