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01 AGO 2012

Neutralidade: caminho para a democracia






ARede - 08/2012 - [ gif ]
Autor: Marina Pita
Assunto: Neutralidade da Rede

Você acha que todos devem ser iguais perante a rede?
O que garante a relativa igualdade na internet é o princípio da neutralidade, que estabelece que qualquer dado de qualquer internauta deve ser tratado da mesma forma, sem privilégios.

A INTERNET está sempre surpreendendo. A cada dia surge uma novidade, criada por alguma pessoa de alguma parte do planeta. Isso porque a rede de alcance mundial, desde que foi criada, é um ambiente de livre acesso a todos. Não tem um “dono”, não é propriedade de ninguém, nem é comandada por ninguém. Essa característica intrínseca à rede é chamada de neutralidade. E é nesse universo neutro que se dá a comunicação ponto a ponto, sem intermediários, favorecendo a inovação, a troca de informações e a liberdade de expressão.

Porém, esse quadro pode mudar. Neste momento, o mundo todo debate se a internet continuará neutra, ou se será submetida a um gerenciamento – como a checagem do que está sendo transmitido e o tratamento diferenciado para cada tipo de tráfego. Distintos interesses, de cidadãos, governos, organizações sociais e grandes corporações econômicas estão envolvidos nessa discussão que pode, dependendo dos resultados, transformar a internet em algo totalmente diferente do que conhecemos hoje.
A neutralidade é um princípio fundamental para o funcionamento da rede pois estabelece que todos os dados sejam tratados de modo igual. Ou seja, um dado não pode ter prioridade em relação a outro. Assim, não importa se o usuário que está enviando os dados – seja um e-mail, uma fotografia ou um vídeo – é uma transnacional de petróleo ou um anônimo agricultor familiar. Também não pode haver discriminação nas conexões: o acesso ao portal de uma grande empresa é tão rápido e possível quanto o acesso a um blog pessoal.

São esses importantes atributos – a isonomia no acesso e o tratamento igual de qualquer tipo de tráfego – que definem o caráter democrático da internet. E por isso a neutralidade é um dos princípios basilares previsto no Marco Civil da Internet (ver página 18), projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, que tem como relator o deputado Alessandro Molon (PT-RJ). Mas, se na teoria a neutralidade da rede está sendo objeto de atenção e a sociedade pressiona por garanti-la, na prática as coisas não são bem assim. Existem diversas situações, a maioria por questões técnicas, em que os dados são tratados de forma diferenciada.

O fato de a rede ser neutra foi o que permitiu, por exemplo, que um jovem morador do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, se tornasse fonte de informações durante a ocupação do aglomerado de favelas, tuitando em tempo real. Rene Silva dos Santos, então com 17 anos, relatou o desenrolar da ocupação do morro pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) pelo perfil @vozdacomunidade e viu seu número de seguidores passar de 700 para 7 mil em algumas horas. Seus tuítes não foram atrasados, nem discriminados. Porque é assim que funciona a internet.

Da mesma forma, certamente a neutralidade foi o que garantiu a sobrevivência e o sucesso do YouTube. Criado depois do Google Vídeos, concorreu, graças ao tratamento isonômico de tráfego, de igual para igual com a solução da gigante de buscas online. O YouTube conseguiu se firmar e ganhar audiência porque mostrou-se mais interessante aos olhos dos internautas. Consolidou-se a ponto de o Google descontinuar seu serviço de vídeo e, depois de alguns anos, comprá-lo. Regras do jogo.

“Esse exemplo ilustra porque temos tanta inovação e startups [novas empresas de tecnologia] surgindo. A barreira de entrada é baixa. É barato começar uma empresa na internet; às vezes o custo é zero. Essa é uma das formas de entender o princípio da neutralidade de rede. Ninguém precisa de autorização para oferecer e jogar tráfego na rede. As pessoas só precisam de um contrato de acesso à internet”, explica Bruno Magrani, pesquisador e professor do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito da Faculdade Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ).

Então, se é assim tão bom, por que mudar? A convergência tecnológica que levou o telefone, a TV, o cinema e tudo o que se puder imaginar para a internet tornou a vida mais simples e o cenário mais complexo. O debate acerca da neutralidade na rede começou nos Estados Unidos, nos anos 1980. Lá, a TV a cabo é bastante disseminada e as empresas que vendiam esse serviço vislumbraram a oportunidade de aumentar os lucros usando a infraestrutura existente para oferecer banda larga. Os consumidores toparam, o que parecia ótimo para as empresas. Acontece que os usuários começaram a usar a internet para baixar vídeos e acessar conteúdos que concorriam com o oferecido na TV. “Então, eles tiveram a infeliz ideia de atrapalhar o acesso do pessoal a vídeos”, explica Demi Getschko, diretor do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). A sociedade reagiu a essa “esperta” iniciativa. O bloqueio do tráfego foi proibido pelas autoridades. Mas ficou evidente a possibilidade e o interesse de alguns em exercer controle sobre aquilo que trafega pela rede.

No Brasil, onde o acesso à internet se deu pela rede de telefonia – lembra daquele barulhinho irritante que fazia  a conexão discada? –, a história tem seus próprios contornos, mas há muito em comum com a situação dos EUA. Em 2004, a operadora de telecomunicações Brasil Telecom (depois comprada pela Oi) bloqueou o tráfego de datagramas correspondentes a chamadas telefônicas via internet de empresas como Skype e GVT. A denúncia da prática anticompetitiva correu rápido. O bloqueio foi suspenso, após denúncia de usuários, no caso do Skype, e por determinação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), no caso da GVT.

A discussão sobre a neutralidade iniciou no nível da infraestrutura (as redes, ou seja, as estradas sobre as quais trafegam os dados), mas se expande para outras áreas, explica Getschko: “É possível falar de censura ou governos impedindo acessos a informações de outros governos classificados como hostis, por exemplo”. Segundo ele, o fim da neutralidade pode se espalhar pela cadeia inteira, como deformação na oferta do serviço a um determinado grupo de usuários baseado em critérios não justificáveis, sejam econômicos, políticos, religiosos ou o que for. Na opinião de Magrani, da FGV-RJ, o fim da neutralidade poderia extinguir a inovação e a liberdade de expressão da internet.

Os especialistas entendem que bloquear, dificultar ou priorizar qualquer transferência de dados pode resultar na censura a determinados conteú-
dos, o que viola o direito à liberdade de informação e à privacidade dos dados. Além disso, extrapola a jurisdição da concessionária de telecomunicações. Seria como se, em uma via, não pudessem rodar os carros de determinada marca porque o dono da pista é também dono de uma montadora concorrente. E mais: o fato de cobrar para alguém transitar não dá à dona da pista o direito de decidir para onde vai esse cidadão.

Nos últimos anos, o conflito de interesses e a possibilidade de gerenciamento da rede só aumentaram. A TV pode ser oferecida pela web, os programa de TV podem ser baixados ou comprados sem o intermédio das programadoras de canais. Ao mesmo tempo, alguns países resolveram estabelecer, por lei, a neutralidade como um princípio. A Holanda é um pioneiro nessa postura. Peru, Chile e Colômbia também adotaram a neutralidade.

O Brasil quer legislar
No Brasil, a discussão de neutralidade na rede, direitos e deveres, tanto de cidadãos, quanto de empresas na internet, tem suscitado debates acalorados. Decidiu-se, então, formular o Marco Civil da Internet, uma espécie de constituição do mundo virtual, em oposição à chamada Lei Azeredo, também conhecida como AI-5 Digital (em referência ao Ato Institucional nº 5 da ditadura militar brasileira), que tratava da questão, criminalizando uma série de práticas.
A polêmica é grande porque, do ponto de vista técnico, a rede mundial de computadores precisa dar tratamento diferenciado a alguns tipos de tráfego para funcionar adequadamente. O gerenciamento do tráfego é necessário em alguma medida, explicam especialistas. Por isso nem todos os tráfegos são tratados da mesma forma. Getschko esclarece, por exemplo, que o conteúdo transmitido ao vivo, como a voz sobre IP e transmissões de TV em tempo real, rodam em um tipo de protocolo, o UDP/IP, que prioriza a velocidade. “O protocolo garante o melhor esforço para que os dados sejam entregues rapidamente, de forma a evitar delay [atrasos]. Talvez haja distorções, como uma cara puxada, mas a conversa pode ocorrer”, diz. Já o protocolo para downloads, o TCP/IP, garante a qualidade da entrega em detrimento do tempo. “Quando baixo um programa, não quero que venha com três bits errados. A transmissão deve ser fidedigna”.

Ou seja, a isonomia não é absoluta quando falamos de internet. Aliás, tratar todo o tráfego de forma igual também pode resultar em problemas para uns usuários e vantagens para outros. Se o tráfego de voz não tiver prioridade, não funciona. Mas as empresas de telefonia que vendem tanto um chip de celular quanto banda larga podem alegar que estão apenas tratando todo o tráfego com isonomia. A questão é complicada. “O principal debate hoje é definir o que é razoável, quais são as hipóteses em que se pode aceitar a discriminação”, afirma Magrani.

No Marco Civil, estão previstas duas exceções à neutralidade, ou seja, duas possibilidades de diferenciação do tráfego. Uma diz respeito à prioridade nas chamadas para serviços de emergência (polícia, bombeiros, ambulância) e a outra se refere aos casos de “requisitos técnicos” para o funcionamento da rede. A definição do que pode ser considerado requisito técnico ficará a cargo de decreto presidencial, com apoio técnico do CGI. E essa imprecisão quanto a esses requisitos tem gerado questionamentos quanto à redação do texto legal. A opção por uma definição abrangente está alinhada com o que tem sido feito pelo mundo. O órgão fiscalizador das telecomunicações nos Estados Unidos, a Federal Communication Comission (FCC), ao definir a neutralidade como princípio, estabeleceu que será aceito gerenciamento “razoável” e que os casos serão estudados um a um.

Demi concorda: “Esse é um mundo complexo [o digital] e que tem de ser negociado caso a caso. Na minha opinião, a forma como a exceção à neutralidade foi colocada no Marco Civil é adequada. O texto indica que todo tráfego e conteúdo deveria ser tratado igualmente, mas reconhece que a internet não é assim. Se o Marco Civil da Internet for além disso, ou vai falar bobagem, ou ficar desatualizado rapidamente”. O mesmo ponto de vista é defendido por Eduardo Levy, diretor executivo do SindiTelebrasil, instituição que representa a indústria de telecomunicações, incluindo as operadoras: “O texto tem de ser genérico, pois a internet é muito dinâmica. O que é gerenciamento razoável não pode estar definido em lei”.

Veridiana Alimonti, advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e conselheira do CGI.br, tem ressalvas quanto ao texto: “Precisa ter cuidado com a abertura para exceções. Não significa que acho a redação ruim, mas talvez pudesse ser mais principiológica”. As exceções, de acordo com a proposta do relator, serão regulamentadas por decreto presidencial. Embora, pela proposta, o CGI deva encaminhar sugestões, a tendência dentro do governo é de que a fiscalização do que é gerenciamento razoá-
vel fique a cargo da Anatel. “Isso tem que ser feito por um órgão de Estado”, afirma o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, lembrando que o CGI é uma organização da sociedade civil. Em países como EUA e Inglaterra, os responsáveis por verificar que a neutralidade da rede seja garantida são os órgãos reguladores do setor de telecomunicações.

Aqui, há opiniões discordantes sobre a quem cabe fiscalizar o respeito à neutralidade da rede. Para Demi Getschko, esse é um papel do Judiciário. Ou seja, quem se sentir prejudicado que recorra à Justiça. Molon imagina que a responsabilidade poderia ser de um órgão do Ministério da Justiça ou mesmo caber ao CGI, que para isso teria de ser institucionalizado como órgão de Estado.

Como o conceito do que é gerenciamento razoável é bastante fluido, os reguladores que mais têm se debruçado sobre o tema, como a FCC dos Estados Unidos e a Ofcom da Inglaterra, têm preferido fazer recomendações a baixar uma lista do que pode e do que não pode. Os abusos, como priorização indevida de tráfego para beneficiar empresas coligadas, por exemplo, são coibidos por meio da fiscalização.

Na avaliação de Magrani, uma das formas de garantir um gerenciamento razoável da rede é obrigar as operadoras e provedoras de acesso a tornar públicas as práticas adotadas. FCC e Ofcom acreditam na transparência como meio de regulação e, por isso, obrigam que nos contratos de banda larga firmados com os usuários as regras de gerenciamento de tráfego estejam explícitas. Segundo esses reguladores, mesmo que o usuário comum tenha dificuldade de compreender tais informações, há especialistas e instituições que se responsabilizarão por isso. A transparência é também uma aposta do Marco Civil brasileiro e está assegurada no texto. (Colaborou Lia Ribeiro Dias)