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10 JUL 2017

Celulares que monitoram conversas de usuários podem se tornar realidade


O Globo - 10/07/2017 - [gif]


Autor: Sérgio Matsuura
Assunto: Segurança na Internet

Segundo especialistas, sensores desses dispositivos podem ser controlados por hackers criminosos

RIO-Durante um almoço com amigos, a estudante Natasha Bretas, de 22 anos, participou de uma conversa sobre um grupo de forró do qual nunca tinha ouvido falar. Dias depois, ao entrar no Facebook, lá estava uma propaganda sobre a banda. Pode ser apenas uma coincidência, mas experiências como essa vêm alimentando a teoria de que os aparelhos eletrônicos que nos cercam estariam constantemente monitorando nossas conversas — e que as informações estariam sendo usadas para o direcionamento de publicidade. As empresas negam, mas a tecnologia existe. E especialistas alertam que, num futuro próximo, a vigilância constante pode se tornar realidade.

— Eu não conhecia a banda, nunca procurei por ela, só ouvi falar naquele dia — relembra a estudante.

O Facebook afirma que não utiliza o microfone do telefone das pessoas para se informar sobre anúncios ou mudar o que os usuários veem no “feed de notícias”. “Apenas acessamos o microfone dos telefones das pessoas quando elas estão utilizando ativamente alguma ferramenta específica que requer áudio e somente quando elas autorizam a utilização, como por exemplo em gravação de vídeos”, explicam os responsáveis pela rede social, em um comunicado.

— Por mais que as empresas digam que não fazem, eu não confio muito — diz Natasha.

Essa é uma crença bastante difundida entre o público que já se acostumou a encontrar propagandas feitas sob medida. E ela faz sentido, ao menos do ponto de vista tecnológico. Os smartphones mais modernos possuem assistentes virtuais acionados por voz, como o Google Now e a Siri. A função oferece a comodidade de utilizar o aparelho sem as mãos, mas revela que o microfone está captando sons o tempo inteiro. Em celulares Android, por exemplo, basta dizer “Ok, Google” que o assistente é acionado.

— Os celulares captam o áudio até o momento em que escutam a palavra de ativação. A partir daí, passam a gravar e conectam-se com a nuvem para oferecer uma resposta — explica Pablo Cerdeira, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio. — A tecnologia existe e está pronta para ser usada. Basta trocar a palavra de ativação de “Ok, Google” pelo nome de um produto ou de uma marca, por exemplo.

O Google reconhece que armazena “as entradas de áudio e voz”, como as realizadas pelo Google Now, mas nega que essas informações sejam utilizadas para fins de publicidade. Por padrão, os áudios são armazenados, mas os usuários podem alterar essa configuração na página “Controle de atividades”. Também é possível visualizar todo o histórico de áudios gravados no endereço . A companhia informa que os dados são “armazenados apenas para ajudar no reconhecimento da voz do usuário e melhorar o reconhecimento de fala em geral”.

Com tantas informações, em várias línguas e de vários países, a empresa construiu um poderoso sistema de reconhecimento de voz. Em conferência realizada no mês passado, a investidora Mary Meeker, da Kleiner Perkins Caufield & Byers, revelou que o software de reconhecimento de voz do Google, em inglês, tem a mesma precisão que o ser humano, sendo capaz de compreender 95% das palavras ouvidas captadas.

— Hoje, acho que os usuários não precisam se preocupar com o que falam, mas, no médio prazo, acredito que isso possa acontecer — prevê Cerdeira. — Armazenar e processar todo o áudio é inviável por causa do volume de dados, mas esses sistemas de reconhecimento de voz transformam o áudio em texto.

A tendência é que cada vez mais as pessoas “conversem” com seus dispositivos. O relatório “Internet Trends 2017”, produzido por Mary Meeker, indica que em 2016 20% das buscas realizadas por dispositivos móveis foram acionadas por voz. Uma das apostas da indústria de tecnologia são as caixas de som inteligentes com assistentes para as residências, controladas por comandos de voz. A pioneira foi a Amazon, com o Echo, seguida pelo Google Home e, neste ano, pelo Apple HomePod.

As TVs são outra fonte de preocupação. Em fevereiro deste ano, a Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) determinou que a fabricante Vizio pagasse multa de US$ 2,2 milhões pela coleta sem consentimento dos hábitos dos consumidores. A companhia não armazenava áudio por microfones, mas, de acordo com a acusação da FTC, a empresa coletava, segundo a segundo, conjuntos de pixels que podiam determinar o que estava sendo assistido. Diariamente, eram coletados 100 bilhões de dados de milhões de televisores, que eram comercializados para anunciantes.

A Samsung se envolveu em polêmica semelhante. Há dois anos, a gigante sul-coreana foi acusada de não deixar claro em sua política de privacidade o destino das informações coletadas pelos microfones dos aparelhos. O texto alertava que os consumidores deveriam estar “cientes de que, se as palavras ditas incluíssem informações pessoais, elas poderiam estar entre os dados capturados e transmitidos a terceiros por meio do uso do reconhecimento de voz”.

PUBLICIDADE É O MENOR DOS PROBLEMAS

Após uma chuva de críticas, a empresa veio à público negar que os televisores estivessem monitorando os consumidores e esclareceu que os dados eram coletados apenas quando a ferramenta de reconhecimento de voz era acionada. A questão da publicidade é a mais próxima do público comum, mas especialistas alertam que ela é a menor das preocupações. Os sensores presentes nesses dispositivos podem ser controlados por hackers criminosos, por exemplo.

— Todos os dispositivos conectados estão suscetíveis a serem comprometidos por códigos maliciosos. Nesses casos, são os atacantes que têm acesso ao que é dito e às imagens captadas pelas câmeras — comenta Cristine Hoepers, gerente-geral do CERT.br/NIC.br, do Comitê Gestor da Internet no Brasil. — Este é um ponto que precisa ser lembrado ao se pensar em segurança e privacidade.

Outro risco é a espionagem por governos. Em março, o WikiLeaks divulgou ferramentas usadas pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês), incluindo um malware apelidado como “Weeping Angel” que infectava televisores Samsung para “gravar conversas em uma sala e enviar os dados para um servidor da CIA”. A empresa informou que o problema afetava TVs produzidas em 2012 e 2013, mas já foi corrigido.

— Existe um aspecto mais perigoso. Entender os perfis pessoais não serve só para a propaganda, mas para direcionar a sociedade — alerta Cerdeira. — Com esses dados é possível eleger um presidente. É muito perigoso.